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A naturalização da violência doméstica e sua intensificação em meio à pandemia

Todo mundo já ouviu a famosa frase “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Há quem concorde, afinal, a vida particular das pessoas só deve interessar a elas mesmas. Há, contudo, um problema nesta justificativa, o de identificar até onde uma conduta pode ser ignorada em razão de sua individualidade.

Um estudo realizado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), chegou à conclusão de que, durante as medidas de isolamento social a fim de barrar os casos de coronavírus, haverá aumento médio de 20% nos casos de violência doméstica em todo o mundo. Se o isolamento social tem ajudado a conter o avanço do número de infectados e mortos em decorrência da Covid-19, por outro lado ele potencializou a ação dos agressores de mulheres. E é justamente por ocorrer na esfera privada e doméstica que os casos de violência durante a adoção da medida de afastamento social, em que as vítimas ficam em contato mais frequente com seus agressores, têm aumentado.

A violência doméstica é uma realidade que acompanha a vida das mulheres de forma atemporal, sendo atemporal também o modo como tal violência é naturalizada. Uma das maneiras mais comuns é legar a ação do agressor à diversas motivações externas ao seu próprio caráter. Quando não se busca a justificativa nas ações da vítima ou na ingestão, pelo agressor, de bebida alcoólica e outras drogas, busca-se no entendimento de que a sociedade por si é violenta e, portanto, deve-se evitar determinadas situações (como a do isolamento social) ao invés de punir os malfeitores.

A exemplo disto, o atual Presidente da República, ao defender seu posicionamento contra o isolamento social, falou, sem qualquer dado cientifico ou estatístico, que o aumento nos casos de violência doméstica em meio à pandemia se dá em razão da falta de alimento na casa das pessoas: “Tem mulher apanhando em casa. Por que isso? Em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Esta é, como as demais, uma justificativa absurda e desonesta que favorece a violência contra a mulher e a estrutura patriarcal da qual ela faz parte.

A violência contra a mulher (não somente a violência doméstica) integra um longo e colérico processo de invenção dos papéis na sociedade, em que ser do sexo feminino implica na incapacidade da própria tutela e na luta ferrenha e constante por respeito, ao passo que ser do ser do sexo masculino incide em dominar, subjugar e não aparentar ter sensibilidade ou outra característica que o aproxime do feminino. Já dizia Miguel Arroyo: “Que homens sejam duros, ambiciosos é normal, faz parte da moral masculina a potência física, o enfrentamento, o confronto e até a violência viril se necessário ou não. Da menina, desde o maternal, se esperam condutas de submissão, sensibilidade, carinho e dedicação”.

Certo é que em “briga de marido e mulher” não há paridade nem justiça entre os lados. Seja no confronto físico, seja no aspecto emocional, seja na disputa por uma vaga de emprego, seja no olhar preconcebido da sociedade na formulação dos papéis, a mulher sempre estará em desvantagem. Neste sentido, “Não meter a colher” funciona como uma naturalização da violência, algo que, nós mulheres, entendemos como legitimação, consentimento e, principalmente, cumplicidade com a perpetuação de situações de violência.

Por:  Maria José Correia (formada em História – UFAC e mestranda em Educação – UFAC)- 26 de maio de 2020

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