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    Linguagem e violência de gênero: o caso Mariana Ferrer* (Por Anna Luisa Maia)**

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    Como linguagem e performance linguística reiteram violências de gênero nos diferentes campos sociais, como o Direito no caso Mari Ferrer?

    Recentemente, foi possível acompanhar, pelas redes sociais, o desfecho do julgamento de André Aranha, acusado de estuprar a influenciadora digital Mariana Ferrer.

    Dentro da audiência, a qual teve trechos vazados na internet, pode-se observar o advogado do suspeito se utilizando das fotos e roupas de Mariana como prova de que esta possui comportamento sexual desviante, no intuito de argumentar, com isso, que a jovem estaria forjando a acusação em busca de lucros financeiros.

    Mariana alega, ainda, que ocorreu manipulação de diversas fotos suas, incluindo uma em que seu biquíni teria sido apagado para aparentar que ela estava nua.

    As atitudes de Cláudio Gastão da Rosa Filho nada mais são do que um exemplo claro de como a performance da linguagem atua na perpetuação de violências de gênero e de como a comunicação se configura como mantenedora de um status quo machista. Explica-se: a linguagem serve de propagadora para diversas espécies de violência, e mais do que instrumento de propagação, é instrumento de veiculação destas.

    Para entender a relação entre linguagem, comunicação e violência, é necessário revisitar alguns conceitos elaborados por John L. Austin e Judith Butler. Segundo esta, o gênero se produz por um processo de performance, o qual muito se assemelha à performance linguística a qual é abordada por Austin em sua “Teoria dos Atos de Fala”.

    Na referida obra, o autor mostra como fazemos ações a partir da linguagem (“how to do things with words”) e, ao mesmo tempo, a influência dessas ações no quesito de produzir realidades no mundo.

    Austin descreve os enunciados como “sujeitos falantes”, os quais praticam uma ação. A partir desse momento, as afirmações não apenas descrevem o mundo, mas fazem algo nele. Mais do que dizer, praticam ações. E é nesse aspecto que discursos dão gênese ao que vem a se tornar violência fática.

    Quando se potencializa um discurso que diz que o comportamento sexual da vítima é relevante para determinar se houve ou não estupro, está se legitimando uma violência, no âmbito fático e jurídico.

    A linguagem, tal qual o gênero, é performática. Nossas escolhas linguísticas não apenas nos traduzem como seres humanos, mas são capazes de produzir, criar e legitimar ações, comportamentos, práxis sociais, dentre outros.

    É possível visualizar um exemplo disso quando se questiona as circunstâncias de uma mulher quanto ela vem a público denunciar um estupro. É comum que se questione onde ela estava, como estava vestida, se estava fazendo o uso de bebidas alcoólicas ou não. Todos esses questionamentos são atos de fala, os quais deixam implícita a seguinte norma social imposta pelo machismo: a mulher que estiver em determinados locais, usando determinadas vestimentas ou bebendo tem alguma – ou toda – culpa da violência que sofreu.

    Também percebe-se claramente como esses questionamentos são fruto de um modelo social patriarcal e machista. Mais do que isso, servem para continuar a sustentar esse modelo. À medida em que se aprofundam os estudos acerca da performatividade da linguagem e sua relação com o machismo, fica cada vez mais evidente o quanto a linguagem o produz – e o reproduz.

    Destaca-se que esse efeito não é surpresa alguma; nada mais é do que a performatividade do discurso exercendo sua função natural de representar e criar a realidade de uma determinada sociedade. Porém, na presente análise, verifica-se uma sociedade violenta sendo representada por suas performances linguísticas.

    Por trás de cada afirmação, há uma forma não explicitada de um performativo; como se fosse performativo oculto, o qual carrega consigo o peso de uma linguagem afetada pelo sistema patriarcal e pela série de violências simbólicas que deste provém.

    As performances de linguagem findam por impulsionar a violência de gênero para que ela deixe de ser simbólica e se traduza em práticas fáticas. Os discursos machistas têm capacidade de influenciar e tentar legitimar, por exemplo, agressões físicas perpetradas contra mulheres.

    No caso em questão, o advogado do acusado tenta inferir que se Mariana é “puta”, não há como ter sido estuprada, afinal, prostituta, a mulher que atua em trabalho sexual, perdeu o luxo de oferecer consentimento no momento em que escolheu sua profissão. Porém, além de todos os absurdos descritos por essa lógica ilógica, sabe-se que profissão nenhuma tem o condão de macular o direito dos indivíduos ao consentimento.

    É importante ressaltar que, segundo Freitas e Pinheiro (2013), as práticas sociais são mediadas pela linguagem. Considerando que é substancialmente por meio da linguagem que o Direito se estabelece, é inegável que a união de campos como Linguística e Direito é propícia para analisar a cultura jurídica relativa à violência de gênero.

    Faz-se necessário destacar que a sociedade machista não pode ser desvinculada de suas práticas discursivas que perpetuam violências de gênero, ou de como essas práticas incutem no imaginário popular a noção de que essas violências são aceitáveis.

    É a partir desse prisma que se busca compreender qual o papel da linguagem na violência de gênero e de que forma a linguagem produz, reproduz e alimenta o machismo estrutural da sociedade, fornecendo, por conseguinte, poder à violência que ele propicia.

    * Texto publicado originalmente na Revista Arquivo1 <http://revistaarquivo1.com/2020/11/linguagem-e-violencia-de-genero-o-caso-mariana-ferrer/>

    ** Anna Luisa Maia possui Graduação em Direito pela Universidade Federal do Acre, UFAC.