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    Migalhas: sobre o mínimo nas relações

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    Quando vivenciei um relacionamento saudável, demorei muito para perceber que aquilo era o mínimo que eu merecia.
    Nós, que somos mulheres na sociedade brasileira, tendemos a acreditar que já é muito numa relação não xingada, espancada ou assassinada. Os noticiários não nos deixam em paz (correção: os homens não nos deixam em paz), e provavelmente aparecerá alguém pedindo que eu não generalize, por isso antecipo: a generalização está nos dados [1].

    São tantos casos de violência física que deixamos de enfrentar outras violências. “É ciumento, mas nunca me bateu”, “Me trai, mas nunca seria capaz de me matar”, “Não me deixa sair sozinha, mas me ajuda muito”, “me deixa com o filho para ir beber, mas não deixa faltar nada em casa”, “faz piada com o meu corpo, mas ele é assim mesmo, não é para magoar”. Essas e muitas outras frases que sempre ouvimos e repetimos são exemplos e sintomas da doença chamada machismo, que se agrava com a misoginia, o sexismo, o patriarcalismo.

    Precisamos falar mais sobre o mínimo nas relações afetivas. Hoje fico indignada quando ouço alguém dizer “Legal teu companheiro te deixar sair sozinha”, fico pensando: por que alguém deveria ter minha tutela, decidir onde e com quem eu vou, se sou maior de idade, trabalho e posso viver sozinha? E minha resposta é a lembrança de uma longa jornada em que as mulheres sempre foram objetificadas e tidas como propriedade de um homem. Um dia isso também passou na minha cabeça sem ser questionado.

    Nas poucas vezes que meus pais falaram sobre casamento, eles sempre deixavam claro que nós (as três filhas) não precisávamos casar, mas se acontecesse, que tivéssemos muito cuidado e, principalmente, respeitasse (o que se restringia a não trair), pois havia muitos casos de assassinato por traição.
    Embora a intenção fosse a melhor possível naquelas condições de semianalfabetismo, era uma fala que nos responsabilizava pelas ações do homem dentro de um casamento.

    Recentemente, quando foram publicados na internet os vídeos de Iverson de Souza (Dj Ivis) espancando sua então esposa na frente da filha de alguns meses e da mãe dela [2], uma das primeiras atitudes dele, frente ao “cancelamento” que estava sofrendo nas redes, foi publicar um print mostrando um bloco de notas em que a mulher havia escrito suas metas de 2021, que incluía casar e ter um filho com ele.
    Em sua cabeça, ela poderia ser culpada da situação de violência que vivenciou, já que ela fez planos para estar com ele.

    Mulheres e homens precisam se libertar. Mulheres precisam de consciência, autonomia, independência (financeira e emocional) para vivenciarem relações seguras e saudáveis. Homens precisam de educação que não lhes deem o falso poder sobre os corpos e as vidas das mulheres. Ambos precisam se posicionar ante as diversas formas de opressão. Isso é responsabilidade das famílias, da escola e de todas a instituições sociais.

    Como disse Gabriel, o pensador, “a gente muda o mundo na mudança da mente” [3].

    Notas:

    [1] Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/06/07/1-em-cada-4-mulheres-foi-vitima-de-algum-tipo-de-violencia-na-pandemia-no-brasil-diz-datafolha.ghtml>

    [2] Disponível em: <https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2021/07/27/dj-ivis-e-indiciado-por-mais-tres-crimes-alem-da-agressao-a-ex-mulher.ghtml>

    [3] Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=atXuxbc7zZk>