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    O Jordão do meu passado, por Hugo Brito

    Por Hugo Brito

    Em minhas recordações, revivo com saudosas lembranças um ambiente que ainda não havia sido engolido pela modernidade. Um lugar sem a deturpação dos costumes do agora, longe da escravidão dos grupos de WhatsApp e das vidas rasas desfraldadas no Instagram. Um retalho da minha história em que a vida era festejada em seus detalhes e temperada de simplicidade. Um espaço em que com facilidade e de modo costumeiro exercitava-se o diálogo e o respeito mútuo. Um solo fértil para a imaginação. O lugar da minha infância e da minha adolescência.

    Escrever sobre o Jordão é fazer um passeio agradável pelas melhores fases da minha vida. Ele foi a sede dos meus aprendizados e das minhas experiências mais variadas. Foi onde desabrocharam meus sonhos e construí amizades que permanecem. O ambiente em que chorei perdas e comemorei conquistas simples e significativas.

    Mas a poeira do tempo encobriu bons costumes. Em mim, alguns persistem. Por exemplo, não sei me dirigir aos meus pais sem tratá-los por “senhor” e “senhora”.  E isso não foi imposição. Tratava-se da natural compreensão do respeito por quem nos deu a vida. A prática do respeito também alcançava o trato com as pessoas idosas. Aquelas que já haviam alcançado a graça da longevidade, nós as chamávamos de avô ou avó, mesmo sem ter laços sanguíneos.

    Esse mesmo respeito, naquele então, era irradiado até à escola. Reverenciávamos nossos professores. Recordo-me que todos os alunos pediam licença para ingressar na sala de ensino. E, por consequência, assimilamos bem o trabalho em equipe no ambiente escolar. Tanto era assim, que ainda é viva na minha memória as lembranças dos mutirões que fazíamos para limpar as antigas carteiras escolares feitas de madeiras. Alunos, professores e servidores, todos juntos, e com alegria que contagiava, cuidavam do ambiente em que se desenvolviam o ensino e a aprendizagem. E isso não era interpretado como exploração do trabalho infantil ou ato de improbidade. Era apenas a consequência do respeito assimilado.  Como resultado, não havia espaço para a depravação da estrutura escolar, seja o espaço físico, seja o espaço moral.

    E naquele compasso da vida, fazíamos do muito com o pouco que nos era dado. Com apenas três instrumentos a fanfarra escolar era composta. Ensaiávamos dias e dias para o festejado Sete de Setembro. A parte urbana do Jordão, nessa data, era tomada de alegria. Os moradores da zona rural vinham todos assistir ao ato solene e a programação criada especialmente para o aguardado dia. Os jogos entre as duas escolas, estadual e municipal, era o momento culminante e o mais esperado. A marcha dos alunos, no chamado calçadão, também era um espetáculo anunciado. Fazíamos com gosto, ainda que no sol do meio dia. O hastear das bandeiras reclamava olhares e silêncio referencial.

    Havia um sentimento de pertencimento à comunidade. Se alguém da cidade morresse, a dor era sentida por muitos e o sentimento de tristeza, comiseração espalhava-se de forma surpreendente. O dolorido da perda encontrava amenização na empatia do próximo. A cidade parava. Não havia festas naquele dia, pois seria um desrespeito com a família de quem havia partido.

    Na escassez, havia compartilhamento. Ainda me recordo o período em que ter uma televisão era um artigo de luxo. E as duas ou três famílias que as tinham recebiam em suas casas os mais variados curiosos e espantados telespectadores. Era uma luta para achar o lugar mais confortável, que era o espaço no chão da sala para sentar-se. Eu figurava dentre os que sempre ficavam na parte de fora da casa tentando enxergar a telinha da TV pela janela ou porta. E era feliz.

    A energia elétrica era distribuída em horário limitado, de modo que não a tínhamos nas vinte e quatro horas do dia. O gerador responsável pelo abastecimento da pequena cidade era ligado logo ao anoitecer e desligado momentos depois, às 22h. Mas antes da energia ser interrompida, havia o sinal que era dado para que as pessoas que estivessem pelas ruas pudessem chegar às suas residências sem as dificuldades da escuridão. 

    A comunicação era presencial. Não havia celulares ou telefones fixos. Quando alguém precisava viajar até à cidade mais próxima, Tarauacá, tinha um jeito bem peculiar de entrar em contato com os familiares que ficavam em Jordão. Era o famoso rádio da prefeitura. Ele estabelecia contato com outro rádio que era acomodado em um prédio na cidade de Tarauacá, que ficou conhecido por Representação. Havia hora certa para esse contato, e o diálogo precisava ser objetivo.

    E quando o primeiro Telefone Orelhão chegou ao nosso município, as pessoas, curiosas da novidade, faziam filas para usá-lo. Algumas nem tinham para quem ligar e eram apenas movidas pela curiosidade de ouvir ao menos a secretária eletrônica do aparelho. Tudo era espanto e atraia risos generosos. Da novidade, surgiram anedotas que povoavam as conversas amenas travadas nas esquinas.

    Ainda no contexto das poucas coisas, o Jordão recebeu água encanada. E foi uma festa. A água era levada até algumas torneiras que ficavam na frente das casas escolhidas. E logo pela manhã, a alegria das pessoas indo encher seus baldes se fazia ouvir. E o barulho da água se confundia com o barulho das conversas sobre coisas do cotidiano. 

    Também resiste em minha memória a imagem das pessoas caminhando para a beira do rio para recepcionar a chegada do primeiro veículo. Com as aulas suspensas, todos os alunos, sem exceção, foram acompanhar a chegada do progresso. Era um trator de esteira, de cor amarela. O evento parou a cidade. Mais tarde, o veículo, que era conduzido pelo próprio prefeito daquele então, o senhor Hilário de Holanda Melo, abriu os espaços que foram preenchidos pelas novas casas que rapidamente se avolumavam. E o velho trator servia a tudo, até mesmo à alegria nossa, as crianças. Foi posto nele uma carroça de madeira sem pneus. Ela era arrastada pela força da máquina pelos terrenos mais irregulares. E as crianças acomodavam-se naquela carroça e realizavam-se com a sensação de serem transportadas de um lugar para outro.

    E agora, ao rememorar aquele contexto, posso afirmar: eu tive infância. Sou de um Jordão no qual as crianças faziam seus próprios brinquedos. Esculpiam-se barquinhos, armas e aviões com o chamado pau-de-balsa. Jogava-se com tampinhas de garrafas e com bolinhas de gude, a que chamávamos de petecas. Virava-se figurinhas de chicletes. Brincava-se de guerras nas florestas, imitando personagens de filmes de ação daquele período. Fazia-se castelos com as areias do rio. Lançava-se garrafas nas águas límpidas do Jordão ou do Tarauacá, e todos se punham a procurá-las em forma divertida de competição. E havia tantas outras brincadeiras… tudo sem a maldade e a violência que caracterizam os dias de hoje.  

    Lembro-me, ainda, que o mês de janeiro era o mais aguardado do ano por conta do novenário com suas atrações e festividades. Algumas delas resistiram ao tempo e persistem até hoje. De outras, apenas as lembranças. Dessas, recordo-me da barquinha com seus balanços que atraiam crianças e adultos, e das ações humanitárias que o padre Humberto realizava.  Ele tratava a todos sem distinção alguma, ao indígena e ao não indígena o tratamento era isonômico. E isso traduzia sua religiosidade. O padre corajoso e de muitas ações voltadas ao bem comum despediu-se da vida deixando as lições de humanidade que não deveriam ser esquecidas. Ensinou-nos mais com seus exemplos do que com as palavras.

     Do passado já distante, recolho a lembrança das festas de junho. Eram os chamados caipiras. Naquele tempo, dias de ensaios que já antecipavam à alegria da festa anunciada. E o ensaio mais conhecido e assistido era o que a senhora Rocilda organizava e promovia no quintal de sua casa. O público lotava o pequeno espaço e somava com a festa.

    No dia de São João, as escolas ornamentavam a única quadra que a cidade tinha. Cercavam-na de palhas e de outros adereços. À noite, além das quadrilhas com seus típicos personagens, contemplavam-se as fogueiras bem arrumadas e sendo consumidas pelo fogo em frente às casas.

    Dias idos e vividos. Já são memória e saudade. Em mim, há pedaços inteiros de lembranças de minhas vivências. E elas se confundem com a própria evolução do Jordão. Não sou escritor de cotidianos, e as letras que aqui vão não têm a pretensão de registrar a história de nosso município. Para isso, um livro se faz necessário. Apenas resolvi lançar ao papel reflexões que me acompanham, e faço antes que elas se dissipem pela força do tempo e das exigências da vida moderna.

    Do Jordão do agora, nada sei dizer. Há anos não moro mais na terra em que nasci e cresci; a terra onde agreguei valores. Hoje, no lugar, novos valores, novos costumes, novas crenças, novos comportamentos.

     Do Jordão do ontem, apenas saudades e uma sensação de que ali a felicidade era mais fácil de ser exercitada. Por óbvio que entendo que o fluir do tempo traz a natural transformação dos costumes e das coisas, mas descrever as lembranças que carrego é uma forma de burlar o inviável e, de alguma forma, manter intacto o que um dia nos serviu tanta felicidade.

    Do Jordão do futuro, boas esperanças como forma de resistência às muitas mudanças que nos conduziram a tantos comportamentos deploráveis.

    **Hugo Brito é  advogado  , bacharel  em Ciências  Sociais e trabalha  como assessor do Ministério  Público Estadual do Acre.