Decidi que não olharia. E mesmo se quisesse, não conseguiria. Não vi, mas ouvi, e acho que foi pior. Recostei o corpo cansado na parede da sala de espera e aguardei em aflição.
Seus gritos de dor também doíam em mim e arrancaram-me lágrimas. Chorei a certeza da ausência. Era o adeus forçado.
Aí veio o silêncio perturbador e eu já sabia o porquê. Na sequência, a voz do médico a dizer-me o indesejável:
– Pronto, meu amigo. Ele se foi.
Sempre ouvi falar em sacrifícios de animais idosos, mas nunca pensei que essa realidade me abraçaria. Abraçou-me.
Ainda hoje me culpo pela covardia daquele dia. Não arranjei forças para lhe ser a companhia no instante final. Não consegui. Minha esposa padeceu da mesma fraqueza. Em lágrimas, decidiu não ir comigo à clínica veterinária. Ficou em casa e me recomendou que lhe mandasse notícias. Quando a telefonei, não houve falas, houve choros de ambos os lados. Foi nossa melhor linguagem naquele momento do adeus definitivo.
E sendo bem sincero, sempre que o levei ao veterinário, acovardei-me até para acompanhar a aplicação de alguma vacina rotineira. Pensei que isso mudaria quando me tornasse pai, não mudou. É possível que tenha agravado.
Foram curtos e longos dezesseis anos. Longos porque esses momentos continuarão comigo a se prologarem nas lembranças que tenho de suas farras caninas. Curtos porque a morte sempre nos trará a certeza da brevidade. Foi assim com a partida de minha mãe, tem sido assim com a partida do meu amigo de sempre, o Felix.
Eu não o escolhi. O que escolhi foi acreditar que essa foi a maneira que Deus encontrou para aliviar o sentimento de perda no qual eu estava imerso naqueles dias cinzentos de minha alma.
Em um desses acasos da vida nos encontramos. Era uma daquelas tardes em que o sol parece ter uma cor sofrida de uma amarelo menos vivo. Havia uma semana do falecimento de minha mãe. Os dias de dispensa do trabalho, autorizadas pelo luto, encerraram-se. Era final de expediente e eu, perdido em pensamentos ruidosos, dirigia para casa. À minha frente, em uma rua pouco movimentada, observei que uma sacola foi arremessada pela janela de um carro.
Não sei por qual motivo, talvez curiosidade, decidi reduzir a velocidade de meu veículo, o que me possibilitou notar que alguma coisa estava viva dentro daquele embrulho. Parei, desci do carro e me dirigi até o objeto. Assustado do que encontraria, rasguei com cuidado a precária sacola de supermercado. E lá estava ele com seu olhar de filhote assustado. Seu corpo todo trêmulo e encolhido em sinal de medo e proteção. Nem ao menos recordo-me se hesitei. Sei bem que o levei para o carro, depois ao hospital veterinário, em seguida para minha casa e, por fim, para minha vida.
E lá se foram as mesmices de meus dias… passaram-se anos de uma parceria que não suportava e nem admitia solidão. Em todas as minhas viagens, meu amigo fiel estava presente. E nesse breve existir, causou-me preocupações, furtou-me algumas noites de sono, trouxe-me irritações passageiras, mas que logo se transformavam em risos, e, o mais importante, fartou-me de uma alegria indizível. Tarde chegou, cedo partiu.
Hugo Brito é jurista e um amante incuráveis das obras literárias cânones.