Outro dia conversando com um amigo fiz referência a outro amigo comum e ouvi, em tom de elogio, a seguinte expressão “Fulano é um cara civilizado”. A expressão cuja raiz etimológica vem do latim “civilis”, palavra derivada de “civis” que significa “cidadão”, aquele que vive na cidade e se relaciona com a ideia de civilização.
Do ponto de vista pessoal, ser civilizado significa não apenas pertencer a uma civilização, mas adotar padrões de comportamentos respeitosos; demonstrar obediência às regras de convivência pacífica; e revelar, assim, que faz parte de um grupo humano em estágio avançado de desenvolvimento social, político, econômico e cultural sob o império das leis e instituições que deem suporte a um processo de longa duração.
No entanto, essa definição estaria incompleta caso não atentasse para o que diz Norbert Elias (1897-1990), autor de vasta bibliografia, inclusive, o clássico, O Processo Civilizador Vol. 2, 1939. Edição brasileira. ZAHAR, Rj, 1993: “A civilização a que me refiro nunca está completa, e está sempre ameaçada. Corre perigo porque a salvaguarda dos padrões mais civilizados de comportamento e sentimento em sociedade depende de condições específicas. Uma dessas é a autodisciplina, relativamente estável por cada pessoa isto, por sua vez, está vinculado a estruturas sociais específicas” (Esta citação está na página 99 do livro excepcional “10 lições sobre Norbert Elias” de autoria das cientistas sociais Andréa Borges Leão – Professora do Departamento de Ciências Sociais e do programa de Pós-Graduação em sociologia e Tatiana Savoia Landim, professora-associada do Departamento de Ciências Sociais, EFLCH-UNIFESP).
De outra parte, Elias, sempre com o olhar interdisciplinar, identifica a correlação da tensão permanente entre a civilização, sua capacidade de pacificar, aprimorar sentimentos e a violência no seu mais alto grau de destruição, a guerra que não é, segundo ele, um acidente histórico, nem um incidente isolado, mas uma condição humana.
A partir dessa perspectiva, o autor passa a discutir a descivilização ou o colapso da civilização com ênfase no que diz respeito ao Holocausto na Alemanha nazistas. Este terrível episódio da humanidade carregava a bandeira de um projeto de descivilização que o mundo enxergou tardiamente. Que lições podem ser extraídas do momento histórico em que vivemos?
Basicamente, duas lições: a primeira é que os processos civilizatórios e descivilizatórios são construídos a partir de movimentos e contramovimentos, forças centrífugas e centrípetas que alimentam uma dúvida existencial: quais as forças ganham a frente no curto ou longo prazo? Por consequência, a segunda lição é ficar atento para os sinais do grau de controle estatal sobre o monopólio da violência; o nível de coesão dos laços sociais; a firmeza ou enfraquecimento das cadeias de interdependência; e a permanente atenção para as tendências que afetam a convivência entre pessoas e nações a exemplo da ameaça da violência, a insegurança e um sentimento difuso do medo.
Neste sentido, é importante destacar que o fenômeno da globalização alterou radicalmente paradigmas e segue alterando por conta de vertiginosos avanços no campo da ciência, da tecnologia com desafios da realidade-mundo e suas interações com o que Manuel Castells, na trilogia seminal, O Poder da Identidade, O Fim do Milênio, denomina de A Sociedade em Rede, um fenômeno que muda a vivência do espaço e do tempo.
Nessa nova moldura, emerge a civilização contemporânea junto com sua irmã siamesa, a barbárie e o cenário dantesco: de um lado, uma afluência nunca vista e, de outro, a profunda desigualdade marcada por uma concentração de poder político, econômico e bélico, também, jamais presenciada na história.
Sem tonalidades dramáticas, nos deparamos, de fato, numa encruzilhada da tragédia bélica ou da implosão climática, caso o ser humano capaz de construir uma grandeza gigantesca, não seja capaz de alcançar uma dimensão ética que preserve a vida das futuras gerações.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda