Não satisfeito em trabalhar para encurralar o governo do presidente Lula, expropriar a renda nacional e esconder o fato de ter virado um modo de vida para 1% dos privilegiados do país, o rentismo se prepara para outro ataque, uma verdadeira armadilha envolvendo o Banco Central: a proposta de emenda à Constituição (PEC) 65/2023, que concede autonomia financeira e orçamentária à autoridade monetária.
Pela proposta, o BC, hoje uma autarquia federal, passaria a ser uma empresa pública “com autonomia técnica, operacional, administrativa, orçamentária e financeira”, mas regida pelas leis do direito privado. O projeto também transforma o servidor do BC de funcionário público em celetista. É puro suco do rentismo nacional, que prefere dar as costas para o Brasil e os brasileiros.
O pretexto apresentado pelos parlamentares que defendem a ideia – invariavelmente liderados por grupos bolsonaristas e por ex-presidentes do BC, e também pelo agora principal defensor da proposta, o atual presidente da instituição, Gabriel Galípolo – convencido como o antecessor, Roberto Campos Neto –, é que a mudança deixaria a instituição em consonância com os demais bancos centrais das nações mais desenvolvidas, como o Federal Reserve (Fed) norte-americano e o Banco Central Europeu.
Também deixaria o BC livre de restrições do Orçamento da União que hoje o impediriam, por exemplo, de desenvolver tecnologias e sistemas como o Pix automático, reforçar a fiscalização do sistema financeiro e manter um quadro bem remunerado e competente.
Acredita quem tem interesse ou quem é muito ingênuo. Na prática, a PEC 65 dobra a aposta da legislação que, em 2021, conferiu mandato fixo a todos os diretores e ao presidente do BC, prevendo regras tão complexas de remoção que equivalem à estabilidade no mandato, e assegura autonomia operacional à instituição.
BC isolado
A PEC isola o BC da órbita da administração pública federal, o que é inconcebível para uma instituição cuja função atende – ou deveria atender – essencialmente a agendas de interesse público: a política monetária, a política cambial, a regulação e fiscalização dos sistemas bancário e financeiro e, oficialmente, “suavizar as flutuações do nível da atividade econômica e fomentar o pleno emprego” (ainda que não cumpra tais missões).
O novo desenho de um BC ainda mais independente só atende aos desejos do oligopólio privado do mercado financeiro, uma vez que o banco passaria a usufruir de uma quase total independência frente aos poderes constituídos e, portanto, à população, e permaneceria refém dos desejos e intenções do rentismo.
É preciso reconhecer que, de fato, o quadro de servidores do BC encontra-se hoje defasado, sobretudo pela não autorização de novos concursos durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
No atual mandato, Lula autorizou a realização de concurso que resultou na contratação recente de 100 novos servidores. Aceitemos a ideia de que o número pode ser insuficiente, assim como é possível que falte ao BC mais recursos para desenvolver tecnologias e aperfeiçoar um sistema como o PIX. Mas para resolver seu problema de financiamento não é preciso recorrer a mudanças como a que a PEC 65 propõe.
Caminhos alternativos
Há diversos estudos mostrando caminhos alternativos para resolver o problema de dotação orçamentária e falta de pessoal, como por exemplo um projeto de lei complementar que, com base no regime vigente e em modelos como o Banco Central Europeu e a Receita Federal do Brasil, consolidasse e reforçasse a autonomia financeira do BC assegurando fontes de receita específicas, mecanismos de reposição automática e vedação ao contingenciamento de dotações orçamentárias, sem depender da programação fiscal geral do Tesouro Nacional; estabelecimento de remuneração por desempenho com base pública, ou seja, que estabeleça um regime de incentivos salariais e bonificações condicionados a metas de desempenho institucional dentro do Regime Jurídico Único (RJU); e alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de forma a permitir que todo o custeio e investimento do BC pudesse ser aprovado com dentro do orçamento de operações de Autoridade Monetária pelo Conselho Monetário Nacional.
Nada disso exigiria um projeto de emenda à Constituição da forma como foi apresentada a PEC 65. Ao contrário dos argumentos dos seus defensores, ela torna o BC ainda mais sujeito a pressões do mercado financeiro. Seus servidores, por exemplo, não mais contariam com a proteção do RJU, que hoje lhes dá estabilidade e independência necessárias ao exercício de suas funções, especialmente a autorização, a regulação e fiscalização dos bancos e demais instituições financeiras.
Imaginemos um emprego contratado sob a CLT, sem estabilidade garantida por lei, tendo a missão de fiscalizar um grande banco com independência. Diante do fato de que uma medida mais dura que proponha poderá vir a ser questionada junto à alta administração do BC e colocar seu emprego em risco, ele pensará duas vezes.
A estabilidade garantida pelo RJU é essencial para atividades fiscalizatórias do Estado, a exemplo da Receita Federal. Igualmente perigosa se tornarão as atividades de autorizações e regulações, áreas constantemente pressionadas por agentes do mercado financeiro. Hoje o BC consegue resistir à pressão das associações de bancos e de outras instituições financeiras para fazer essas alterações normativas.
Maior ataque político
Uma nota conjunta divulgada pelo Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal), Sindicato Nacional dos Técnicos do Banco Central (SinTBacen), Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (Anafe) e Sindicato dos Servidores Públicos Federais no DF (Sindsep-DF) definiu a PEC 65 como “o maior ataque político já realizado contra esta autarquia e o seu corpo funcional nos seus mais de 60 anos de existência”, além de “desconectar a instituição do controle público”.
A nota chama a atenção para outro aspecto da PEC, que prevê o uso da receita da chamada “senhoriagem” para custear as despesas administrativas do Banco Central. A senhoriagem de bancos centrais é o ganho obtido por eles ao carregar passivo sem remuneração (meio circulante e recolhimentos compulsórios sobre depósitos à vista).
Ocorre que seus ativos têm remuneração ligada às taxas nominais de juros, ou seja, quanto maior os juros, maior a senhoriagem. Desse modo, esse uso da senhoriagem prevista na PEC pode levar a um incentivo por taxas de juros mais elevadas, que contribuiriam para um aumento dos ganhos. Qualquer defasagem salarial, dos servidores e também do seu corpo de diretores, deve e pode ser corrigida. Mas sem evidentemente ter que recorrer à senhoriagem para tanto.
O Brasil está viciado no rentismo e na ortodoxia monetária e a PEC 65 só aprofundará esse vício. É parte de uma campanha intensiva que já dura longas décadas – desde o governo de Fernando Henrique Cardoso.
É a ideia falaciosa de insulamento burocrático, segundo a qual decisões do Banco Central são essencialmente técnicas, isentas e baseadas em dados, não capturadas por interesses políticos dos governos de ocasião e situadas acima do bem e do mal (onde o “bem”, claro, é o mercado, e o “mal” está na política e no governo).
Essa é a razão pela qual quanto os liberticidas do rentismo só enxergam autonomia e independência quando diz respeito à política e ao governo (logo, ao interesse público), e não ao mercado financeiro (logo, aos interesses privados).
BC independente
Para qualificar esse debate, convém lembrar que o BC tem atuado de forma independente há décadas. Todos os presidentes da República, Lula e Dilma Rousseff inclusive, respeitaram a autonomia técnica do BC, mesmo nos momentos em que discordaram fortemente das decisões tomadas pelos sus diretores. Como Lula já disse recentemente, o BC nunca deixou de cumprir seu papel em suas gestões anteriores, mesmo subordinado politicamente ao presidente da República.
O gasto do país com juros da dívida pública beira R$ 1 trilhão, agravando a concentração de renda e impedindo o crescimento econômico, mas é como se as decisões do BC não tivessem a ver com essa expropriação dos recursos nacionais. Mas a reação, como se nota, é dar mais autonomia ainda ao BC, e não cobrar-lhe responsabilidade e providências.
Ao prever um Banco Central com receita e orçamentos próprios, além dos mandatos fixos e independentes, estaremos diante de uma instituição funcionando como uma espécie de organização paralela, ou seja, um Estado dentro do Estado.
O apetite do rentismo é incontrolável, e a PEC 65 é sua receita definitiva para saciá-lo.
- José Dirceu é ex-ministro-chefe da Casa Civil, ex-deputado federal e ex-deputado estadual pelo estado de São Paulo. Este texto representa as opiniões e ideias do autor.