No país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo (veja mais abaixo), oferecer acolhimento pode salvar vidas. É o que tem feito algumas igrejas em São Paulo, que unem o amor ao próximo à adoração a Deus, independente de gênero ou orientação sexual.
Mesmo nascida em uma família evangélica, Ivana Warwick não imaginava, quando criança, que um dia subiria em um púlpito como pastora. Isso porque ela sofria um “silenciamento autoinfligido” até compreender a própria identidade de gênero.
A travesti, que hoje é pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), contou que, durante a transição, “quando era só desespero e angústia”, sonhava em poder se arrumar e ir à igreja. “Foi uma alegria imensa quando vi que isso era possível”, disse.
Marcos Gladstone, pastor da Igreja Cristã Contemporânea (ICC), passou por um sentimento parecido quando se descobriu um homem gay. Na época, há pouco mais de 20 anos, ele pensou em abandonar a religião que o acompanhava desde os 14 anos de idade.
“Eu não conseguia mais viver a minha fé. Nenhum lugar poderia estar me aceitando. De vez em quando, eu até ia em algumas igrejas participar de um culto, muito esporadicamente, mas não podia me firmar, não podia me assumir claramente”, disse.
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Teologia inclusiva
Tanto Ivana quanto Marcos encontraram a teologia inclusiva no momento em que mais precisavam: quando estavam aceitando a própria sexualidade. O que surgiu do encontro foi transformador.
Assim que ouviu o termo pela primeira vez, em 2002, Marcos passou a pesquisar sobre. Na época, ele encontrava apenas artigos em inglês. A alternativa era traduzir os textos. Assim, criou o primeiro blog sobre teologia inclusiva em língua portuguesa do mundo.
“Todo mundo começou a me procurar. Queriam saber sobre como é que podia se aprofundar mais, se tinha igreja, como eu faria, o que eu faria, e tudo mais”, afirmou.
Foi então que teve contato com a ICM, igreja fundada em 1968, nos Estados Unidos, com o objetivo claro de acolher a diversidade. Lá, ele se consagrou pastor. “Aí, eu pude começar o meu chamado, que veio se concretizar em 2006, que foi quando a gente fundou a Igreja Contemporânea”, contou o líder religioso da instituição de doutrina protestante.
“Sirvo a um Deus que me ama do jeito que eu sou”, disse o pastor, que é casado com outro homem há 18 anos e tem quatro filhos.
Na visão do religioso, “Deus ama a todas as pessoas sem preconceito”. Ivana concorda, mas afirma que o termo “inclusivo” deve ser problematizado.
“Deus não exclui ninguém. O simples fato de a gente usar o termo ‘inclusiva’ já é contra a vontade de Deus. Porque se Deus não excluiu, por que a gente tem que incluir?”, questiona a pastora, que tem dois filhos, frutos de um casamento que durou mais de 20 anos.
Igrejas acolhem LGBTs em São Paulo
A ICM, na Lapa, na zona oeste de São Paulo, e a ICC, no Tatuapé, na zona leste da capital, realizam cultos e atividades que acolhem a população LGBTQIA+.
As duas igrejas também participam, frequentemente, de manifestações em prol da comunidade LGBT, como a Parada do Orgulho. Na 29ª edição, deste ano, ambas as instituições religiosas estiveram presentes.
“Em todas as paradas LGBTQIA+, a gente está lá”, disse Marcos, que afirmou que a ICC parou de frequentar a Marcha para Jesus após serem chamados de “marca da besta” e de “inimigo” em uma das edições.
Ivana, por sua vez, comemorou ter encontrado um monge que fundou uma comunidade budista afirmativamente LGBT. A pastora afirmou ainda ter passado o evento próxima das Mães pela Diversidade – ONG formada por mães e pais de pessoas LGBTQIA+.
Nos cultos, a ICC se restringe à doutrina protestante. Já a ICM adota diferentes doutrinas religiosas. O importante, para ambos os pastores, é acolher. “Nós não criamos empecilhos para a pessoa se expressar”, afirmou Ivana, se referindo a uma mulher trans que “floresceu” indo à igreja.
Kasumi Takara, a mulher trans em questão, diz que sentiu “um misto de acolhimento, proteção e aprendizado” desde que chegou à ICM.
“A passagem da Bíblia mais ilustrativa dessa liberdade e diversidade dentro da ICM está em Atos 10:34-44, em que Pedro diz: ‘Reconheço, em verdade, que Deus não faz acepção de pessoas’. Dessa forma, a igreja resgata a personalidade das pessoas — especialmente aquelas que não se viam como dignas de frequentar uma Igreja, uma vez que fora dela são vistas como párias ou invisibilizadas perante a sociedade”, disse a religiosa.
Foi com o apoio e o aconselhamento da pastora Ivana e do reverendo Christiano Valério que Kasumi decidiu iniciar sua transição de gênero. “Essa decisão foi como renascer, agora como uma mulher, passando por uma nova infância, uma nova adolescência, uma nova puberdade e uma nova maturidade”, destacou.
“Nós vemos ali que ela encontrou a expressão dela, da sexualidade dela, do gênero dela, do jeito que ela entende a espiritualidade”, afirmou Ivana sobre a fiel.
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Membros da ICM São Paulo na 29ª Parada do Orgulho LGBTQIA+
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Membros da Igreja Cristã Contemporânea na 29ª Parada LGBTQIA+
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Membros da ICM São Paulo na 29ª Parada do Orgulho LGBTQIA+
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Família membro da Igreja Cristã Contemporânea, formada por duas mulheres e duas crianças
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Pastora Ivana e Reverendo Christiano, da ICM São Paulo
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Membros da Igreja Cristã Contemporânea
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Membros da ICM São Paulo na 29ª Parada do Orgulho LGBTQIA+
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Membros da Igreja Cristã Contemporânea
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Ivana Warwick, pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana em São Paulo
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Culto da Igreja Cristã Contemporânea
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Pastora Ivana Warwick e a fiel da ICM, Kasumi Takara, na 29ª Parada do Orgulho LGBTQIA+
Arquivo pessoal
Brasil continua como país que mais mata LGBTs no mundo
- Neste Dia do Orgulho (28/6), o Brasil segue em uma posição de extremo alerta: continua, após 14 anos consecutivos, como o país que mais mata LGBTs no mundo.
- De acordo com o Grupo Gay da Bahia (GGB), mais antiga organização não governamental LGBTQIA+ da América Latina, que realiza o levantamento desde 1980, foram registradas 291 mortes violentas em 2024, 34 casos a mais do que em 2023.
- O total representa uma morte violenta a cada 30 horas. Nesse total, estão incluídos 273 homicídios e 18 suicídios, afirmou a organização.
- Embora não haja uma lei específica para o crime de LGBTfobia no Brasil, a discriminação e violência contra pessoas da sigla podem ser punidas através da Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989).
- As penas podem variar de um a cinco anos de reclusão, dependendo da gravidade e forma do ato.
“Homossexualidade não tem cura, homofobia sim”
Para o pastor Marcos, homofóbicos que usam o nome de Deus e de Jesus Cristo para agirem com discriminação precisam de cura. “Homossexualidade não tem cura, homofobia sim”, disse o líder da ICC, igreja que já foi alvo de pichações e até mesmo bombas, em outras unidades do Brasil.
Ivana é contundente, e chama de “canalha” quem cita Deus para discriminar. “Eu acho que eles estão tirando a beleza e a poesia do Evangelho, porque o mais lindo do Evangelho é que ele é para todos, todas e todes. Jesus não deixou de se dirigir a ninguém, ele não deixou de apoiar ninguém”, destacou.
Para ela, muitos desses homofóbicos são pais e mães, que vão enfrentar o seu próprio ódio voltando contra eles mesmos. “Então, onde deveria existir amor, entendimento, liberdade, você traz prisão, silenciamento, ódio, morte”, afirmou.
“Eu, primeiramente, fico triste. Não fico com raiva, são canalhas, mas eu não fico com raiva porque me dá uma tristeza imensa de ver que estão plantando, estão minando um terreno que terão que percorrer depois. Isso é muito triste. Tudo isso está fazendo com que a Igreja esteja perdendo significância”, declarou a pastora.