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    Em Pinheiros, homem em surto é rendido. Na Cracolândia, morre com 25 tiros

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    Dois casos envolvendo abordagem de policiais militares a homens que estavam em aparente surto, em dezembro de 2024, ilustram como o CEP de uma ocorrência pode influenciar na sobrevivência do suspeito na cidade de São Paulo.

    O primeiro caso ocorreu em um apartamento na região da Cracolândia, vizinhança pobre na região central da capital e foco de constante tensão com a Polícia Militar (PM). O segundo foi em uma cobertura em Pinheiros, bairro nobre na zona oeste paulistana.

    10 imagensA PM deu pelo menos 459 disparos para matar 85 pessoas em ocorrências em que nenhum dos suspeitos portava arma de fogo no momento em que foram baleadas. O número de tiros representa uma média de 5,4 por ocorrênciaUm dos casos de maior repercussão foi o da morte do estudante de medicina Marco Aurélio Acosta, que estava desarmado
Os pais do estudante, Júlio César Navarro e Silvia Monica Cardenas, prometem ir às últimas consequências por Justiça
Outro caso de pessoa desarmada Gabriel Renan Soares, baleado pelas costas por um policial de folga quando tentava furtar produtos de limpeza de um mercadinho 
Entre os mortos, também está João Victor implorou para não morrer durante ação da PMFechar modal.1 de 10

    Um levantamento inédito do Metrópoles mostra que 85 pessoas mortas pela PM em 2024 na cidade de São Paulo não portavam arma de fogo. Foram mortas 246 pessoas no ano

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    A PM deu pelo menos 459 disparos para matar 85 pessoas em ocorrências em que nenhum dos suspeitos portava arma de fogo no momento em que foram baleadas. O número de tiros representa uma média de 5,4 por ocorrência

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    Um dos casos de maior repercussão foi o da morte do estudante de medicina Marco Aurélio Acosta, que estava desarmado

    Arquivo pessoal4 de 10

    Os pais do estudante, Júlio César Navarro e Silvia Monica Cardenas, prometem ir às últimas consequências por Justiça

    Artur Rodrigues/Metrópoles5 de 10

    Outro caso de pessoa desarmada Gabriel Renan Soares, baleado pelas costas por um policial de folga quando tentava furtar produtos de limpeza de um mercadinho

    Material cedido ao Metrópoles6 de 10

    Entre os mortos, também está João Victor implorou para não morrer durante ação da PM

    Arquivo pessoal7 de 10

    O colombiano Michael Stiven Ramirez Montes foi morto com 25 tiros durante um surto, em um apartamento na região da Cracolândia

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    O colecionador de armas (CAC) Marcelo Berlinck Mariano Costa atirou de dentro de uma cobertura em Pinheiros (bairro nobre de SP na zona oeste) e acabou preso pela PM sem ser baleado

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    As mortes por PMs na cidade aumentaram na gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos): passaram de 148, em 2022, para 246, em 2024, uma alta de 67%

    Pablo Jacob/Governo de SP10 de 10

    O secretário da Segurança, Guilherme Derrite, é conhecido pela exaltação à letalidade policial, o que especialistas afirmam que pode ter pesado nas estatísticas

    Reprodução/Instagram

    Ambos compõem a reportagem especial “A política da bala”, publicada pelo Metrópoles nesta terça-feira (10/10) com base em documentos referentes a todas as ocorrências que resultaram em morte por intervenção policial na capital paulista no ano passado.

    Os dados revelam que das 246 pessoas mortas pela PM em 2024, ano mais letal da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite (PP), 85 não portavam arma de fogo e 47 foram baleadas pelas costas.

    Homem em surto na região da Cracolândia

    Era véspera de Natal quando a polícia foi chamada para uma suspeita de gritos de uma criança na rua Aurora, Campos Elíseos, perto de onde ficava o fluxo de usuários de crack. Quando os agentes chegaram no local, encontraram o colombiano Michael Stiven Ramirez Montes, 33, em um aparente surto. O homem estava sentado, no chão do apartamento, esfaqueando um cão da raça bull terrier.

    As câmeras corporais dos policiais mostram os agentes de arma em punho, em um corredor do lado de fora (foto em destaque), tentando negociar para que o homem largasse a faca. “Não vale a pena”, um deles diz.

    Michael, com a faca no mão e o cão ensanguentado nos braços, não responde e continua a ferir o animal. De repente, um policial dispara. Foi o primeiro de muitos estampidos que lembraram um pelotão de fuzilamento. Ao todo, foram 44 tiros: 25 atingem o corpo do colombiano. O cachorro foi vítima de quatro disparos e também morreu.

    Logo depois, um superior se aproxima dos policiais perguntando se o homem estava com a faca. “Estava, chefe”, responde um dos praças. Ele emenda com o questionamento se o suspeito foi para cima deles. “Chefe, toda hora ele tentou várias vezes esboçar. No momento em que ele tentou…”, dizia um PM, antes de ser cortado pelo superior. “Foi para cima?”, questionou, de maneira que aparenta induzir as respostas dos subordinados.

    Um dos agentes acaba respondendo que sim, embora as imagens mostrem que o homem permanecia no chão quando foi baleado. O chefe, então, sentencia que o uso da força foi necessário, versão dos policiais no boletim de ocorrência. O documento também registra o encontro de 320 gramas de maconha e dois invólucros de cocaína.

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    Homem em surto em cobertura de Pinheiros

    No dia 6 daquele mesmo mês, a 6 quilômetros do cenário da morte de Michael, policiais da Rota, a tropa de elite da PM, foram chamados para uma ocorrência bem mais grave. O CAC (sigla para Colecionadores de Armas, Atiradores e Caçadores) Marcelo Berlinck Mariano Costa, 31 anos, havia feito disparos do alto de uma cobertura em Pinheiros, bairro nobre da capital paulista.

    CAC Colecionador de armas foi preso com arsenal em casa após surto

    Assim que entram no prédio, os PMs escutam o som dos tiros. Ao chegarem no andar, o homem, também em um aparente surto, grita de lá de dentro para que a equipe entre. No entanto, logo em seguida, ele faz um disparo em direção à porta onde estavam os agentes. Os PMs retrocedem e resolvem chamar o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate), setor da PM especializado neste tipo de ocorrência. Até que os especialistas cheguem, eles permanecem no local para a contenção da situação.

    Os policiais, então, utilizam explosivos para arrombar a porta do apartamento. Um cão policial entra no imóvel e consegue imobilizar o homem. Os policiais prendem Marcelo sem disparar um único tiro. Lá dentro, a polícia encontra pequenos sacos plásticos com cocaína, além de outros já vazios, o que indica que teriam sido consumidos anteriormente. No imóvel, também foi localizado um arsenal com 152 armas de fogo.

    Disparidade

    O caso envolvendo o CAC aconteceu na região do 14º DP (Pinheiros), onde foi registrada uma ocorrência de resistência seguida de morte. Já o caso da região da Cracolândia se desenrolou no 3º DP (Campos Eliseos), com um índice cinco vezes maior de ocorrências com mortes por PMs.

    A disparidade de casos se repete em outras regiões da cidade. O 89º DP (Morumbi) fica no bairro onde talvez haja a desigualdade social mais visível na capital: um cenário marcado pelas mansões do bairro que dá nome ao distrito e, de outro lado, pelas construções precárias da maior favela da cidade, Paraisópolis. Foi ali que os escrivães registraram mais casos de resistência seguida de morte: 14 no total.

    O que diz a PM

    A Polícia Militar (PM) afirma, por meio de nota, que “não tolera desvios de conduta” e que, “como demonstração desse compromisso, desde o início da atual gestão, 463 policiais militares foram presos e 318 demitidos ou expulsos”.

    Segundo a corporação, todas as mortes por policiais são investigadas com acompanhamento da Corregedoria e do Ministério Público. Além disso, o comunicado afirma que em todos os casos são instauradas comissões para identificar “não-conformidades”.

    “A atual gestão investe em formação contínua do efetivo, capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, como armas de incapacitação neuromuscular, com o objetivo de mitigar a letalidade policial”, diz a nota.