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    “Foda-se as crianças”, diz PM antes de matar jovem na zona leste. Ouça

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    Câmeras de segurança flagraram um suspeito implorando para não ser morto durante uma operação da Polícia Militar (PM) na zona leste de São Paulo, em julho de 2024. João Victor De Jesus Da Silva, 22 anos, não era o alvo do mandado de prisão, mas acabou sendo morto pelos policiais com três tiros de fuzil dentro de casa.

    O caso de João Victor (foto em destaque) é uma das 246 mortes por intervenção policial registradas na capital paulista em 2024, ano mais letal da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite (PP). Reportagem especial do Metrópoles publicada nesta terça-feira (10/6) mostra a PM matou 85 pessoas sem arma de fogo e 47 com tiros pelas costas.

    10 imagensA PM deu pelo menos 459 disparos para matar 85 pessoas em ocorrências em que nenhum dos suspeitos portava arma de fogo no momento em que foram baleadas. O número de tiros representa uma média de 5,4 por ocorrênciaUm dos casos de maior repercussão foi o da morte do estudante de medicina Marco Aurélio Acosta, que estava desarmado
Os pais do estudante, Júlio César Navarro e Silvia Monica Cardenas, prometem ir às últimas consequências por Justiça
Outro caso de pessoa desarmada Gabriel Renan Soares, baleado pelas costas por um policial de folga quando tentava furtar produtos de limpeza de um mercadinho 
Entre os mortos, também está João Victor implorou para não morrer durante ação da PMFechar modal.1 de 10

    Um levantamento inédito do Metrópoles mostra que 85 pessoas mortas pela PM em 2024 na cidade de São Paulo não portavam arma de fogo. Foram mortas 246 pessoas no ano

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    A PM deu pelo menos 459 disparos para matar 85 pessoas em ocorrências em que nenhum dos suspeitos portava arma de fogo no momento em que foram baleadas. O número de tiros representa uma média de 5,4 por ocorrência

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    Um dos casos de maior repercussão foi o da morte do estudante de medicina Marco Aurélio Acosta, que estava desarmado

    Arquivo pessoal4 de 10

    Os pais do estudante, Júlio César Navarro e Silvia Monica Cardenas, prometem ir às últimas consequências por Justiça

    Artur Rodrigues/Metrópoles5 de 10

    Outro caso de pessoa desarmada Gabriel Renan Soares, baleado pelas costas por um policial de folga quando tentava furtar produtos de limpeza de um mercadinho

    Material cedido ao Metrópoles6 de 10

    Entre os mortos, também está João Victor implorou para não morrer durante ação da PM

    Arquivo pessoal7 de 10

    O colombiano Michael Stiven Ramirez Montes foi morto com 25 tiros durante um surto, em um apartamento na região da Cracolândia

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    O colecionador de armas (CAC) Marcelo Berlinck Mariano Costa atirou de dentro de uma cobertura em Pinheiros (bairro nobre de SP na zona oeste) e acabou preso pela PM sem ser baleado

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    Pablo Jacob/Governo de SP/Divulgação10 de 10

    O secretário da Segurança, Guilherme Derrite, é conhecido pela exaltação à letalidade policial, o que especialistas afirmam que pode ter pesado nas estatísticas

    Reprodução/Instagram

     

    João Victor foi abordado em uma operação realizada no dia 31 de julho do ano passado para cumprir um mandado de homicídio. Um equipamento de segurança registrou o momento em que sete PMs encapuzados chegaram caminhando em posição de combate na Rua Martins Soares Moreno, às 17h48 daquele dia.

    O vídeo (assista abaixo) mostra o grupo indo para um puxadinho de tijolos vermelhos onde morava João Victor, que não tinha relação com o mandado de prisão. Mesmo assim, enquanto dois policiais aguardavam na escada de acesso, tentando impedir a aproximação de pessoas, os outros cinco entraram no imóvel.

    Áudio da câmera

    O que aconteceu na parte de dentro da casa não foi registrado em vídeo. Mas o microfone da câmera conseguiu captar, entre 17h49 e 17h56, conversas entre os policiais e João Victor, que implorou por mais de sete minutos para não ser morto.

    “O que eu fiz, senhor? Eu não tenho arma”, disse ele. O rapaz mencionou seus filhos, de 7 e 6 anos. Um policial respondeu: “Foda-se as crianças”.

    Na sequência, após um longo diálogo, é possível ouvir um PM gritando “larga a arma”. Para a família, foi uma tentativa de simular um confronto. A versão oficial é que a vítima teria resistido à abordagem e atirado contra os policiais.

    Os gritos por misericórdia foram silenciados pelo estrondo dos disparos. Três projéteis de calibre 7.62, capazes de atingir alvos a 800 metros de distância, atravessaram seu tórax instantaneamente. Ele foi levado para o Hospital Sapopemba e, assim que chegou, teve o óbito constatado.

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    Vício

    Procurado pela Justiça por um roubo que teria ocorrido em 2022, João Victor era dependente químico. A situação piorou nos últimos anos, quando aderiu ao uso da droga sintética conhecida como k9. Seu pai, o caminhoneiro Sergio Antonio da Silva, afirma que, desde então, o rapaz passou a vender os móveis e objetos que tinha em casa para comprar a substância. Quando os PMs do COE chegaram, não havia mais quase nada na casa, de 20 metros quadrados e dois cômodos.

    “Quando ele era menor ele deu trabalho, mas graças a Deus ele saiu dessa vida aí maldita. Só que depois ele se jogou nas drogas, fazia de 3 a 4 anos que ele estava nessas drogas aí, uma tal de K9. Eu tentava tirar ele, mas não consegui. Infelizmente, eu não consegui tirar ele desse vício”, conta Sergio ao Metrópoles.

    Segundo o pai do rapaz, não havia arma alguma com o filho. “Ele era um viciado, não tinha nada de arma na mão. Devido a esse vício ele vendeu tudo. Vendeu os móveis, vendeu botijão de gás, fogão, geladeira. Saiu vendendo para comprar mais”, afirma Sergio.

    Sergio Antonio da SilvaSergio Antonio da Silva, pai de João Victor, diz que o filho não tinha arma

    Cadáver

    Depois do som dos disparos, a rua foi tomada por uma intensa movimentação de policiais militares. Eles cercaram o acesso dos dois lados, impedindo a passagem da família da vítima e de moradores do bairro.

    O resgate chegou às 18h38. João Victor foi retirado do local às 18h46, cerca de 50 minutos após os tiros. Ele foi levado em uma maca, totalmente coberto por uma manta térmica de alumínio, diante dos gritos de desespero de amigos, vizinhos e familiares. Para a família, ele estava morto. “Ninguém leva três tiros de fuzil, espera quase uma hora e continua vivo”, diz o pai do jovem.

    A prática de retirar cadáveres como se ainda estivessem vivos já foi registrada em vários casos de execução, com objetivo de atrapalhar a realização da perícia no local e encobrir a atuação ilegal da polícia.

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    O que diz a PM

    Por meio de nota, a Polícia Militar afirmou que “não tolera desvios de conduta” e que, “como demonstração desse compromisso, desde o início da atual gestão, 463 policiais militares foram presos e 318 demitidos ou expulsos”.

    Segundo a corporação, todas as mortes por policiais são investigadas com acompanhamento da corregedoria e do Ministério Público. Além disso, o comunicado afirma que em todos os casos são instauradas comissões para identificar “não-conformidades”.

    “A atual gestão investe em formação contínua do efetivo, capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, como armas de incapacitação neuromuscular, com o objetivo de mitigar a letalidade policial”, diz a nota.