A trilha arenosa corta a imensidão verde denunciando a grandiosidade e a fragilidade da maior floresta tropical do planeta: a areia é tão-somente o chão de onde, quase inexplicavelmente, surgem as árvores gigantescas e toda a trama verde que parece não ter começo nem fim.
A mata não recorre às entranhas do solo para existir, ela se alimenta de si mesma, das folhas, dos galhos, das frutas, das flores, das cascas das árvores, de tudo o que cai no solo e forra o terreno arenoso, paupérrimo em nutrientes (por isso o risco de a floresta acabar seja tão grande e assustador).
Uma menina que vem atrás de mim, na trilha, pergunta para os pais: “Aqui é a Amazônia?”. Há espanto na voz da garotinha de não mais de 7 anos. Ela não precisou vencer lonjuras para chegar à selva fechada. Em meia hora de carro ou 70 minutos de ônibus, a partir do centro de Manaus, se chega à floresta nativa.
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O que deve ter assustado a garotinha e assustou a mim mesma, que nasci aqui, é a abrupta fronteira entre a mancha urbana e a floresta colada na cidade.
Basta atravessar uma rua e se sai de um bairro chamado Cidade de Deus, um dos mais pobres e com maiores índices de violência da cidade, para se alcançar o solo originário Amazônico, o Museu da Amazônia, Musa, uma das poucas e maiores florestas primárias em área urbana do mundo.
O espanto da garotinha foi o espanto do motorista de aplicativo quando entrei no carro. “O que a senhora vai fazer praquelas bandas?”, ele me pergunta, com o jeito amazônico que contém uma certa ingenuidade ao mesmo tempo intrusa e gentil. Então, ele me conta que dias antes um corpo esquartejado foi encontrado perto do meu destino. Comento que as facções criminosas disputam território em Manaus e ele, um caboclo de não mais de 25 anos, meio que desconversa.
As duas maiores capitais da região amazônica, Belém e Manaus, são também as cidades com maior número de favelas no Brasil, como apontou o Censo 2022 (IBGE).
A fratura brasileira aqui não tem disfarce, as contradições desse país tão grandioso aqui se revelam no espanto da menina (“é aqui a Amazônia?”).
As notícias dos telejornais e dos portais noticiosos locais revelam uma cidade caótica, embora pequena e rica, à margem de um dos mais impressionantes espetáculos da Terra, o Rio Negro. (Olho para as águas cor de escuridão e me sinto uma astronauta solta e sozinha na imensidão do universo. A escala amazônica é maravilhosamente atordoante).
Neste começo de fim de junho, uma outra força poderosa se desvela com a grandiosidade própria da região: a disputa apaixonada do boi Garantido versus o boi Caprichoso no Festival Folclórico de Parintins.
É inevitável tentar compará-lo com o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro (tem até um bumbódromo e uma porta-bandeira de saia rodada), mas reduzi-lo a essa comparação é grave e até mesmo patético erro de avaliação.
A disputa dos dois bois, o vermelho e o azul, na Ilha Tupinambarana, é a expressão apoteótica da cultura cabocla, aquilo que lá atrás os modernistas chamaram de antropofagia, só que interna, de um Brasil que se constitui da mistura de suas próprias raízes, a indígena, a cabocla, a nordestina e não se perde nem mesmo com a chegada dos patrocinadores, dos investimentos, do muito dinheiro que costuma resultar em diluição da funda originalidade daquilo que brota da cultura popular.
Mas a força expressiva do boi amazônico é tamanha que o dinheiro melhora a economia da cidade, mas não derrete o sentido da coisa em si, nem se descola da origem, do lugar onde cresceu e de tudo o que nela se revela: a toada, o tambor, a dança, as fantasias, as alegorias, os desfiles, a disputa apaixonada. Tudo na escala amazônica de um Brasil que, mesmo assolado por tanto ódio, desejo de destruição e de morte, não se perde de si mesmo tão grandioso ele é.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.