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Hereges de ontem e de hoje (por Gaudêncio Torquato) 

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Hereges de ontem e de hoje (por Gaudêncio Torquato) 

Em 1376, um dominicano, Nicolau Eymerich, nascido em Gerona, reino da Catalunha e Aragão, fez um manuscrito, chamado de Manual dos Inquisidores, que é um relato da crueldade da igreja nos tempos da Inquisição. 50 anos depois de Gutemberg ter inventado a prensa de impressão com tipos móveis (1503), o manuscrito foi impresso em Barcelona, na Espanha.

Trata-se de uma minuciosa coletânea a respeito do conceito de heresias, a lógica inquisitorial, os truques, a pressão dos inquisidores, os indícios para reconhecimento dos hereges, entre outras coisas.

Para se ter uma ideia do escopo do livro, selecionamos alguns truques dos hereges para responderem aos inquisidores sem confessar. O primeiro consiste em responder de maneira ambígua: “pode ter acontecido, pode não ter acontecido; não me lembro, mas é possível que tenha sido assim”. O segundo truque consiste em responder acrescentando uma condição: “se minha conversa foi gravada, então, conversei”. O terceiro truque consiste em se fingir de surpreso: “puxa, não sabia disso”. O quarto truque consiste numa autojustificação: “como eu vivia viajando, não pude participar das reuniões”. O quinto truque consiste em fingir demência ou súbita debilidade física: “eu não respondi à pergunta que o senhor me fez na reunião passada porque passei mal, minha pressão arterial baixou”.

Alguns políticos brasileiros são conhecidos por sua matreirice na técnica da entrevista. Respondem apenas aquilo que querem. O modelo mais citado para este caso é o ex-governador e ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf. É conhecido pela arte de dizer o que não foi perguntado e não dizer o que todos querem ouvir.

Jânio Quadros, por sua vez, era perito na arte de se fazer de surpreso. Perguntado por Leon Eliachar se o oval da Esso é mesmo oval ou aval, Jânio se toma de surpresa e arremete: “sugiro-lhe, amistosamente, uma consulta a qualquer psicanalista. O Brasil é tão mencionado nesse seu questionário, quanto a Esso”. Foi uma tremenda gozação. E diante da pergunta: “qual será seu slogan, 50 anos em 5 ou 5 anos em 60”? Jânio não hesita: “50 anos em 5, mais o pagamento dos atrasados”.

O truque de mudar as palavras das perguntas tem sido comum no meio político. Ao político, é perguntado algo assim: “o senhor vai dizer tudo que sabe aos Procuradores”? E ele responde: “quem diz a verdade, tem tudo a seu favor. Quem não deve, não teme”. O truque de deturpar as palavras é usual. Exemplo: “o sr. acredita que o relatório do Banco Central não vai condená-lo?” Resposta: “o relatório pode ser uma peça de condenação ou de inocência. Se não comprova nada sobre minha pessoa, sou inocente. Quem me condena não é o Banco. É a imprensa”.

O truque da autojustificação, na área política, é uma espécie de artimanha que procura encobrir a verdade: “o senhor favoreceu fulano de tal, que tem uma grande folha corrida no campo da corrupção”. E o político responde: “sou uma pessoa que acredita nos outros; sou de boa-fé, sempre procurei ajudar. Se alguém utilizou de minha boa-fé, certamente não foi com minha aprovação. Se soubesse que fulano era corrupto, não teria lhe dado ajuda”.

Nos grandes inquéritos, nos depoimentos nas Cortes Judiciais e nas CPIs de impacto, depoentes conseguem, frequentemente, driblar os interrogadores.

Pois bem, assistimos, nos últimos dias, a um jogo com muitos dribles entre interrogados e interrogadores no campo de uma Corte Judicial. O centroavante, na linha do ataque, fustigou com muita habilidade um time de oito jogadores. Foi um jogo muito disputado.

Deixemos a metáfora de lado.

O depoimento de alguns réus da trama golpista do 8 de janeiro na 1ª Turma do STF, dado na última terça feira, traz à tona os truques dos hereges descritos pelo dominicano Nicolau Eymerich. Assistimos a uma sessão recheada dos advérbios “não, talvez, sim”, sob a sombra de lembranças tardias e amnésias seletivas. O tenente coronel, Mauro Cid, parecia amnésico ao responder ao ministro-relator, Alexandre de Moraes, esquecendo eventos e situações de alta significação, como entrega de uma caixa com dinheiro ao general Braga Netto; desconhecimento de conversas que ele mesmo teve com generais; autojustificação (em um depoimento anterior, deixara de responder a uma pergunta do ministro Alexandre porque sua pressão arterial baixara; ou não tomara conhecimento por estar viajando. Noutras vezes, dava respostas ambíguas (“não me lembro, mas pode ter sido assim”).

O ex-presidente Jair Bolsonaro usou o mesmo método: respostas ambíguas; negação de fatos (edição da minuta do golpe, negação de ação contra a Constituição); desculpas por ter se excedido na acusação de que o ministro Alexandre e outros ministros do STF terem recebido dinheiro.  Fez até chiste.

Mesmo tentando ser o Bolsonaro “paz e amor”, será difícil que o STF o inocente por suas práticas contra o Estado Democrático de Direito.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista e professor emérito da ECA-USP

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