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    Lauterpacht e Lemkin em Gaza (por Pedro Adão)

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    A cidade da Ucrânia a que hoje chamamos Lviv teve vários nomes — Lemberg, enquanto parte do Império Austro-húngaro; Lwów, denominação em polaco e a atual grafia, desde que foi anexada pela União Soviética, em 1939. É possível contar a história do longo século XX europeu a partir desta localidade. Uma história que se prolonga em forma de tragédia até aos nossos dias.

    Há, contudo, uma outra história, porventura ainda mais crucial, cujo epicentro é também a cidade ucraniana: a do direito internacional moderno. Num livro magistral, felizmente com edição em português, Estrada Leste-Oeste – as origens do genocídio e dos crimes contra a humanidade, Philippe Sands, professor de direito em Londres e dos mais reputados advogados em tribunais internacionais, percorre essa história, reveladora dos nossos tempos.

    No livro, construído quase como um romance policial, Sands cruza a vida do seu avô (um judeu sobrevivente ao holocausto) com as de dois dos mais eminentes juristas do século XX, Hersch Lauterpacht e Rafael Lemkin. Três “judeus errantes” que passaram a juventude em Lviv, não terão falado pessoalmente, mas foram fundamentais para Sands e para compreender o século XX. Há uma outra personagem neste livro, Hans Frank, conselheiro legal de Hitler, e governador da região durante a ocupação Nazi. Eminente jurista, Frank, o “carniceiro da Polónia”, seria condenado à morte em Nuremberg.

    É na Alemanha do pós-Guerra que esta história se inicia, durante o julgamento que abriria uma nova fase nos direitos humanos, quando passou a ser possível julgar líderes de um país num tribunal internacional. Lauterpacht e Lemkin foram personagens centrais, mas discretos deste processo. Devemos-lhes a tipificação dos crimes pelos quais ficaria célebre o julgamento de Nuremberg: Lauterpacht é responsável pelo conceito de “crimes contra a humanidade”, enquanto Lemkin criou o de “genocídio”.

    Os dois habitantes de Lviv tiveram uma longa discussão intelectual, mas não é líquido que se tenham conhecido pessoalmente. Tendo vivido e estudado na cidade ucraniana, ambos se exilaram. Lauterpacht fez carreira em Cambridge e, em Nuremberg, fez parte da equipa de acusação britânica. Lemkin conseguiu escapar da Polónia em plena guerra, e ensinaria em Duke. No julgamento foi conselheiro da delegação norte-americana. Os dois eram simpatizantes da causa sionista e o que estava em causa naquele tribunal era para eles, também, uma questão pessoal: tinham perdido quase toda a família no holocausto, às mãos do governador Hans Frank.

    Os detalhes da história são fascinantes e o debate intelectual merece ser revisitado. Afinal, na discussão entre crimes contra a humanidade e genocídio trava-se, também, uma distinção fundamental. Conquanto o primeiro conceito remete para o extermínio de indivíduos em larga escala, o segundo sugere o aniquilamento de um grupo de pessoas com características partilhadas e assenta num termo criado por Lemkin: uma amálgama da palavra grega, genos (tribo ou raça) com o termo latim, cide (matar).

    Desde outubro de 2023, morreram em Gaza cerca de 60 mil palestinianos, um terço dos quais crianças. Não podemos deixar de pensar no que diriam, hoje, sobre o que se passa neste território martirizado, estes dois homens justos e de simpatias sionistas que ajudaram a moldar o direito internacional. Já o descendente de judeus Philippe Sands, cujos restantes livros mereciam edição em português, é representante legal da Palestina no Tribunal Internacional de Justiça.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)