Conveniada com o Ministério da Saúde para executar ações de atenção à saúde de indígenas em uma das regiões mais remotas da Amazônia, a Fundação São Vicente de Paulo, sediada em Minas Gerais, apresentou orçamentos de gêneros alimentícios fornecidos por uma loja de autopeças.
A prática, segundo relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS, foi utilizada nas cotações de preços exigidas por lei.
O episódio integra um conjunto de irregularidades descritas na auditoria que avaliou a execução do convênio firmado pela ONG com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Ao analisar os documentos apresentados para a compra de itens como café da manhã e lanche destinados às aldeias do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Alto Rio Negro, os auditores identificaram que uma das empresas consultadas não atuava no ramo de alimentação, mas sim na revenda de peças automotivas.
Sede do Ministério da Saúde em Brasília
Além disso, a auditoria, obtida pela coluna, encontrou grandes discrepâncias entre as propostas e verificou que, em alguns casos, as três cotações apresentadas eram dos mesmos fornecedores, indicando possível fraude no processo.
“Já na fase de execução do convênio, no que tange à contratualização dos bens e serviços, observou-se que a convenente firmou diversos contratos com empresas sem realização de cotação de preços”, complementaram os auditores.
Governo repassou R$ 184,3 milhões à fundação
O caso mostra como a letargia do poder público favorece esquemas de desvio de recursos.
O convênio com a ONG foi assinado em 2018, a cotação na loja de autopeças ocorreu em 2022, a auditoria que detectou as ilegalidades só foi concluída em 2024. Enquanto isso, a ONG recebeu R$ 184,3 milhões de recursos públicos até julho do ano passado. Quase o valor total do contrato, de R$ 221 milhões.
O governo Lula manteve pagamentos até julho de 2024 e, somente a partir deste ano, suspendeu o contrato e pediu ressarcimento de 0,6% do valor total repassado desde 2018.
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A auditoria constatou ainda que a fundação não tem sede operacional, equipamentos, veículos ou equipe compatível com a complexidade da missão – que abrange mais de 26 mil indígenas, em 666 aldeias, localizadas em uma das regiões mais remotas da Amazônia.
Itens como “material didático”, “consultoria” e “alimentação” aparecem de forma genérica, sem justificativa de preços, quantidades ou cronogramas de execução. Em muitos casos, não há sequer explicitação do que seria adquirido.
A Sesai reconheceu as fragilidades e afirmou ter promovido ajustes. As correções, contudo, não foram suficientes para modificar a avaliação dos auditores sobre o convênio, cuja execução foi considerada “não conforme” na maioria dos aspectos.
O pente-fino também encontrou indícios de duplicidade: mesmo com a previsão de contratação de 26 profissionais administrativos dentro do convênio – incluindo um coordenador com salário mensal de R$ 15 mil –, a entidade terceirizou serviços como contabilidade, supervisão e gestão de recursos humanos, mas não comprovou as entregas.
Ministério diz que convênio para atendimento a indígenas foi descontinuado
Em nota à coluna, o Ministério da Saúde informou que “o convênio com a Fundação São Vicente está encerrado”.
“Ressalta-se que, por solicitação do próprio ministério, esse convênio foi auditado, resultando na recomendação de devolução de R$ 1,112 milhão – 0,6% do valor total repassado desde 2018”, segue a nota.
O ministério disse, ainda, que “a prestação de contas do convênio segue sob supervisão do Fundo Nacional da Saúde, com relatórios sendo enviados à Controladoria Geral da República (CGU) e ao Tribunal de Contas da União (TCU). Caso se comprove irregularidades na execução dos contratos, a entidade será responsabilizada e deverá ressarcir o erário público”.
Conforme o ministério, o modelo de contratação de entidades sem fins lucrativos para a manutenção da força de trabalho nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas está em processo de mudança.
Dos 34 DSEIs, dez já migraram para o novo modelo e os demais 24 serão transferidos integralmente até outubro deste ano. “A medida visa garantir maior eficiência e transparência na gestão dos profissionais que atuam na saúde indígena”, esclareceu.
A coluna não conseguiu contato com a fundação.