Saiu de moda rebaixarmos a inteligência artificial à condição de cavaleiro do apocalipse digital. É o que demonstra o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em seu Relatório de Desenvolvimento Humano 2025, com o título “Uma Questão de Escolha: Pessoas e Possibilidades na Era da IA”. Conspiração das máquinas só existe em Hollywood.
O Relatório torna cafona essa mania de espalharmos fantasias de fim do mundo sobre qualquer salto científico que não consigamos compreender inicialmente. A inteligência artificial não chegou para escravizar a espécie humana (nem sequer substituí-la), no estilo Matrix ou O Exterminador do Futuro. Afinal, a IA não dispõe de nenhum livre arbítrio que possa selar o futuro da humanidade.
Na vida real, quem conspira contra a humanidade somos nós mesmos, os humanos. Nesse sentido, o PNUD alerta que os resultados produzidos pela IA dependem das escolhas feitas pelas pessoas que projetam e alimentam seus algoritmos. Informação é como culinária – quanto melhor for a qualidade dos ingredientes, melhor ficará o bolo.
Acontece que a IA tem um potencial disruptivo semelhante ao de outras invenções tecnológicas que transformaram a sociedade e o mundo para sempre, como a roda, ou a energia elétrica. Por isso, a IA causa certa insegurança em relação ao seu poder, a exemplo do que já vimos acontecer, por exemplo, com a energia nuclear e o seu uso para finalidades militares.
A preocupação do PNUD/ONU é mostrar que a IA é um acelerador tão poderoso da produção científica e da automação de processos que, mesmo podendo aprofundar algumas crises da humanidade (desigualdade social, corrida armamentista e mudança climática), pode ser, principalmente, uma ferramenta decisiva para eliminação ou a contenção desses mesmos desarranjos históricos crescentes.
Tudo depende das escolhas feitas por quem projetar e operar a IA. O Relatório 2025 propõe um foco nas pessoas e não na tecnologia. “São as pessoas – não as máquinas – que determinam quais tecnologias prosperam e a quem elas servirão”. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) global bateu recorde em 2024, mas “as diferenças [sociais] entre os países com IDH muito alto e baixo têm aumentado”. Se a IA for utilizada para beneficiar os mais pobres, as discrepâncias diminuirão.
Na mesma direção, é possível considerar que a Inteligência Artificial pode potencializar as capacidades criativas e gerenciais das pessoas, bem como facilitar atividades e aumentar a produtividade do trabalho. Até mesmo criar novas modalidades de empregos ou negócios, sem necessariamente provocar desemprego irreversível em larga escala. O uso positivo da IA para o bem-estar social pode se estender também para a formulação, a implantação e gestão de políticas públicas, melhorando os resultados e a transparência.
A publicação do PNUD exemplifica a concentração da qualificação e do acesso à IA. “As respostas do ChatGPT estão mais próximas culturalmente dos países com IDH muito alto do que das pessoas de países com IDH baixo”. Enquanto isso, os mais pobres fornecem um volume imenso de dados e informações, pelos quais não recebem retribuição justa, mas que têm valor inestimável para a geração de lucros das big techs e seus clientes.
Contudo, para que a IA cumpra seu papel de catalizadora do bem estar social, o Relatório 2025 da ONU recomenda que se invista em uma “economia de complementaridade”, impulsionando a “inovação com propósito”, fortalecendo as “capacidades humanas que fazem a diferença”.
Felipe Sampaio: Cofundador do Centro Soberania e Clima; atuou em grandes empresas e 3º setor; foi empreendedor em mineração; dirigiu o Instituto de Estudos de Defesa no Ministério da Defesa; ex-diretor do sistema de estatísticas do Ministério da Justiça; foi secretário executivo de Segurança Urbana do Recife.