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    Pax israelensis (Por Manuel Loff)

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    Em fevereiro, foi o Procurador-Geral do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan. Agora, os EUA impuseram sanções contra quatro juízas do TPI que abriram investigações sobre crimes de guerra e/ou contra a Humanidade praticados pelos EUA no Afeganistão e por Israel na Palestina. Todas mulheres, duas delas africanas (cidadãs do Benim e do Uganda), uma peruana, outra eslovena. Nesta linguagem descarada que a ultradireita tem, o TPI é acusado de “politização e de abuso de poder” O objetivo é intimidar todo o pessoal do TPI e bloquear as investigações em curso.

    Dir-se-á que relação de Trump com o direito internacional é a mesma que tem com a justiça do seu próprio país. Depois de Biden e os seus antecessores terem aceite todas as violações possíveis do direito internacional que Israel pratica desde 2023 (aliás, desde 1948), Trump associou-se ativamente ao ataque descabelado que Israel tem feito à ONU, sem precedentes na história da organização: insultos ao Secretário-Geral e aos responsáveis de todas as agências da ONU, intimidação direta de todos relatores especiais dos Direitos Humanos (a começar por Francesca Albanese), interdição de uma agência da ONU (a UNRWA) com 75 anos de atividade incessante na Palestina, acusada diretamente de “terrorismo”, e, sobretudo, o assassinato de centenas de profissionais e funcionários da ONU. Sem precedentes.

    No quadro daquilo que no Ocidente se quis descrever como a “reação” ao 7 de outubro, Israel já fez praticamente de tudo na Palestina: assassinou deliberadamente população civil de um território ilegalmente ocupado, um terço dos quais crianças, a uma escala que não deixa dúvidas sobre a intenção de genocídio; forçou a deslocação em massa da população, e várias vezes, o próprio exército ocupante deteve e deportou milhares de palestinos; matou centenas, milhares, de médicos, enfermeiros, jornalistas, pessoal de ONGs; destruiu praticamente todos os edifícios, especialmente hospitais e escolas, reduzindo Gaza a ruínas e tendas improvisadas. Como mais de 30 relatores especiais da ONU para os direitos humanos denunciaram há um mês, “a comida e a água foram cortadas durante meses, induzindo a fome, a desidratação e a doença, o que fará com que mais mortes se tornem a realidade quotidiana para muitos, especialmente para os mais vulneráveis.”

    O que se vive em Gaza não é imaginável para nenhum de nós. E, contudo, a impunidade permanece, comprovando à saciedade que, afinal, a aplicação do direito decorre apenas da força. E quem a tem, hoje ainda, são os EUA, um estado que os tratados assinados por Portugal classificam como “aliado”.

    Desde há muito que Israel se tem revelado o modelo de sociedade no qual se revê a ultradireita neofascista do mundo. Supremacia de uma etnia (os judeus), cuja identidade nacional se construiu no próprio processo de colonização e não antes; regime de apartheid e de securitização militar impostos à etnia autóctone (os palestinos) cujo território se ocupou; uma engenharia social feita da fusão de militarismo social, investimento tecnológico sem precedentes no controlo e vigilância totalitários; uma ideologia de orgulho nacionalista, religioso e colonialista de uma etnia que se descreve a si própria como resgatando um território da barbárie e protegendo o “Ocidente” do “inimigo”; a visão paranoica de um mundo que inveja e odeia “o povo eleito”. A semelhança com o fascismo histórico de há um século é evidente.

    Se, antes de Trump, a repugnante impunidade da ocupação israelita vinha acompanhada da encenação de um plano original de dois Estados que nunca saiu do papel, com Trump e Netanyahu do que se trata é da concretização final de limpeza étnica e genocídio. Exatamente o que Hitler quis fazer: uma Nova Ordem europeia construída pela morte, pelo extermínio.

    A nova ordem que se quer construir hoje com o rearmamento e a tese de que estamos, por todo o lado, em guerra, tem os contornos da Pax israelensis. E é também por isso que nunca como hoje foi tão importante criar um movimento popular e universal pela paz e pela democracia antifascista. Como em 1945.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)