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Que o Irã não nos faça esquecer Gaza (por Amílcar Correia)

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Que o Irã não nos faça esquecer Gaza (por Amílcar Correia)

Há 30 anos que Benjamin Netanyahu desejava uma guerra entre Israel e o Irã. Desde que se tornou líder do Governo, pela primeira vez, em 1996, o primeiro-ministro israelita sempre assentou carreira e discurso contra a possibilidade da República Islâmica do Irão de possuir armas nucleares. Um relatório da Agência Internacional de Energia Atómica que acusava Teerão de não cumprir as suas obrigações de não-proliferação nuclear, e o consequente argumento da ameaça existencial que daí poderia decorrer, uma nova ronda de negociações entre EUA e Irã, os crescentes protestos contra a ocupação e as atrocidades cometidas em Gaza ou na Cisjordânia e a cimeira que a França se preparava para organizar em nome da solução dos dois Estados criaram a conjuntura para os ataques unilaterais de sexta-feira.

Como faz quando se sente acossado, Netanyahu optou por uma fuga para a frente. Com os ataques de surpresa, Israel abortou as negociações de um eventual acordo sobre o desenvolvimento de energia nuclear iraniana, como sempre fez quando negociações para um cessar-fogo em Gaza registavam algum avanço. O que fica por saber é até onde vai a anuência do Presidente dos EUA, que queria aquele acordo, depois de desmantelar um acordo semelhante que tinha herdado de Barack Obama, aos planos do primeiro-ministro israelita. Daniel Shapiro, embaixador dos EUA em Israel de 2011 a 2017, disse à Foreign Affairs que Donald Trump teria pedido mais tempo a Netanyahu para negociar e que este se tinha recusado a ceder. A ser verdade, não é um grande indicador sobre a capacidade de influência de Trump e da política externa dos EUA, que tem estado à prova no Médio Oriente.

O Irão fez saber que estava disponível para aceitar um acordo que impeça o país de adquirir armas nucleares, caso isso signifique terminar com esta guerra, e Israel prometeu massacrar Teerão e aconselhou a população a deixar a capital. Trump tentará forçar um acordo nuclear como o Irão para acabar com esta guerra?, perguntava-se esta segunda-feira no Haaretz. O homem que foi eleito para terminar as guerras que com ele em Washington não teriam começado não fará mais do que galhofar na sala oval ou no G7, onde se recusou a contribuir para atenuar a dimensão do conflito. Já antes, o secretário de Estado Marco Rubio dissera o que se esperava do posicionamento dos EUA. Basicamente, a mensagem é: não estamos envolvidos nos ataques e não é nada connosco. Trivial. Muito MAGA.

Netanyahu vai aproveitar a oportunidade que lhe dá o Presidente dos EUA, distraído com o orgulho da parada militar em dia de festa de aniversário, e tentar aplicar ao regime do Irã que fez ao Hezbollah ou ao Hamas: a decapitação das cúpulas militares e políticas. E continuar com o seu plano de reconfiguração do Médio Oriente, depois das derrotas iranianas irremediáveis em Gaza, Líbano ou Síria.

Esta guerra preventiva, como lhe chama Israel, para prevenir que outra possa acontecer, é um paradoxo. É mais um atentado ao direito internacional. Israel demonstrou com estes ataques a capacidade de infiltração e de neutralização que já tinha exibido nos seus ataques ao Hezbollah. Mas este crescendo militar israelita não irá trazer os reféns de Gaza de volta, dificilmente acabará com as ambições e possibilidades iranianas de enriquecerem urânio, o que se seguir à eventual queda do regime dos ayatollahs será uma incógnita, e a única certeza é que Benjamin Netanyahu prolongará a sua vida política. Não é certo que o que move Netanyahu seja a segurança dos seus cidadãos. Caso o regime iraniano sobreviva, teremos um cenário mais bélico do que nunca, uma crise petrolífera, na certa, e quiçá o envolvimento dos EUA, o que talvez seja o próximo desejo de “Bibi”, o que é pouco MAGA.

Esta fuga para a frente significa uma guerra contra uma teocracia que não respeita os direitos civis de ninguém, e em particular das mulheres, e que tem sido um apoio determinante na propagação do terrorismo e no esforço de guerra russo na Ucrânia. Mas a simpatia que Israel poderá obter por enfrentar um regime nada simpático aos nossos olhos ocidentais não nos pode fazer esquecer os crimes e a catástrofe de Gaza. Caso isso aconteça, será uma das façanhas de Netanyahu: fazer com que Israel deixe de ser o Estado pária que deve ser, por causa dos crimes de guerra praticados naquele território, com a fome a ser usada como uma arma de guerra, e a fomentar uma milícia palestiniana para combater o Hamas, e passe a ser o aliado em apuros, a vítima a precisar de ajuda para enfrentar um regime condenável.

Transcrito do Jornal O Público

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