Nas democracias, os jornalistas gritam em conferências de imprensa. Querem que a sua pergunta seja ouvida – e respondida – e gritam.
É um pouco selvagem, mas é prática comum.
Vemos isso no Reino Unido, em França ou nos EUA, às vezes também em Portugal, mas pouco, e em todos os países com tradição e hábitos democráticos. Por contraste, nas ditaduras, das duas uma: não há perguntas ou, se há, são ordeiras, simpáticas e obedientes.
Esta semana, Chris Sommerfeldt, que “faz” Câmara Municipal de Nova Iorque para o tablóide Daily News – ou seja, cobre todas as reuniões de câmara e conferências de imprensa, tem fontes que vão do porteiro ao chefe de gabinete do mayor e procura notícias sobre a câmara todos os dias – tentou fazer uma pergunta a Eric Adams, presidente da câmara de Nova Iorque, e gritou:
– Se só pode escolher uma…
Conseguiu meia frase ou nem isso. O jornalista interrompeu o mayor e, em resposta, o mayor interrompeu o jornalista.
Adams tinha acabado de dizer que vai recandidatar-se como independente – e não como democrata – concorrendo com duas entradas no boletim de voto: End Anti Semitism e Safe & Affordable.
Tendo já sido debatido nos media nova-iorquinos o facto de a lei eleitoral do estado de Nova Iorque exigir que os candidatos tenham uma única linha no boletim de voto, o jornalista interrompeu e tentou fazer a tal pergunta.
Ao que o mayor respondeu:
– Estás a gritar muito, Chris – disse “com uma voz provocadora e cantada”, na descrição do New York Times. – Pára de gritar. Deves ter feito isso na escola.
Diz ainda o New York Times: “O Sr. Sommerfeldt tentou fazer a sua pergunta novamente. O Sr. Adams cortou-lhe a palavra. ‘Se ele voltar a fazer isso, não pode vir às nossas conferências’, disse o presidente da Câmara à sua equipa, acrescentando: ‘Não vai entrar nesta conferência, o meu off-topics, e ser desrespeitoso, e gritar, e pensar que faz o que quer. Se voltar a fazer isso, não passará por aquela porta.’ O Sr. Sommerfeldt tentou mais uma vez fazer a pergunta. ‘Ele fê-lo outra vez’, disse o Sr. Adams. ‘Certifiquem-se de que a segurança sabe que ele não pode voltar a entrar nesta sala.’”
Os off-topics são as conferências de imprensa de rotina sem tema fixo ou pré-anunciado, não servindo para comunicar políticas públicas ou comentar um acontecimento. É na rotina dos off-topics que os jornalistas podem perguntar aos políticos o que querem, sem serem cortados com um “não foi isso que nos trouxe aqui hoje”.
No fim da conferência de imprensa, Kayla Mamelak Altus, porta-voz de Adams, confirmou que Sommerfeldt está a partir de agora impedido de cobrir as conferências de imprensa de Adams. Disse que a proibição não afectava o Daily News em geral, mas Sommerfeldt em particular, que o jornalista fora banido por estar a “calling out”, a gritar perguntas, e a “falar por cima dos outros repórteres”, tendo sido “desrespeitoso”. Altus disse também que o seu objectivo é assegurar que todos os media têm igual acesso ao presidente da Câmara.
Pequeno problema: há três meses que Sommerfeldt levanta o braço para indicar que tem uma pergunta a fazer e há três meses que não lhe dão voz. As conferências off-topics de Adams são semanais – é fazer as contas. A fonte é o jornal, mas repórteres que cobrem a câmara e assistem às repetidas tentativas de Sommerfeldt fazer perguntas confirmaram.
Segundo problema: a porta-voz de Adams disse ao New York Times que não sabia que Sommerfeldt não tinha conseguido fazer nenhuma pergunta há três meses, mas a 5 de Maio houve uma pergunta numa off-topics na qual, justamente, isso lhe foi perguntado: porque é que a câmara não deixa Sommerfeldt fazer perguntas?
“Os nossos repórteres têm o direito a fazer perguntas e os contribuintes não estão a financiar a polícia para manter os repórteres fora das conferências de imprensa da Câmara Municipal”, disse Andrew Julien, director do Daily News. Numa carta dirigida ao presidente da Câmara, o Daily News Union, unidade do News Guild de Nova Iorque, pediu que Adams anule a proibição, disse que Sommerfeldt “estava a fazer o seu trabalho”, que o seu trabalho “não é ficar à espera que lhe dêem autorização para fazer perguntas” e que “a única pessoa que foi desrespeitosa” naquele dia foi Adams.
Um caso grave, mas isolado?
Terceiro problema: não é bem assim.
Em Fevereiro, o Presidente Donald Trump abriu um novo capítulo na relação do políticos com os media quando baniu a Associated Press (AP), agência de notícias norte-americana, das conferências de imprensa na Sala Oval.
O bloqueio começou quando a AP continuou a escrever “golfo do México”, ignorando a ordem executiva de Trump que o mudou para “golfo da América”.
Em Abril, num tribunal, a AP ganhou – com um juiz nomeado por Trump –, mas logo a seguir, e tendo sido derrotado, Trump mudou a política de acesso dos media à Casa Branca.
Agora, nenhuma das três agências de notícias tem lugar permanente na Sala Oval. A AP, a Reuters e a Bloomberg News passaram a fazer parte da pool de 30 media, incluindo jornais, podcasts, rádios e televisões, cujos lugares rodam.
Em teoria, poder-se-ia dizer que a mudança de Trump acolhe os novos media, mais digitais, alguns chamados “independentes”, e que isso é bom para a democracia.
O problema é que os supostos “independentes” têm-se revelado, sem surpresa, de uma simpatia extrema em relação a Trump. Não é só o facto de elogiarem o Presidente enquanto fazem perguntas nas conferências de imprensa. Grave é que não escrutinam, não verificam, não incomodam.
Transcrito do Jornal O Público