Há um mês, ninguém conhecia Zohran Mamdani fora da bolha política de Albany, capital do estado de Nova Iorque.
Desde o furacão de terça-feira, quando ganhou as primárias do Partido Democrata, jornais de todo o mundo escreveram sobre Mamdani e a possibilidade de vir a ser o próximo prefeito de Nova Iorque.
Mamdani nasceu em Kampala, no Uganda, filho de pais indianos, vive em Nova Iorque desde os sete anos, é cidadão norte-americano desde 2018. Se for eleito, será o primeiro prefeito muçulmano e de origem asiática da cidade.
Até a sua mulher, Rama Duwaji, foi “biografada” em todo o lado, do New York Times ao South China Morning Post.
Todos escreveram sobre a sua “história de amor muito moderna” e o facto de Mamdani e Duwaji se terem conhecido no Hinge, uma plataforma digital de dating que se apresenta como alternativa ao Tinder e outras parecidas (o “alternativo” aqui é promover encontros entre quem procura amor e não relações superficiais). Casaram numa cerimônia civil com um notário público e regressaram à casa de metrô.
Todos escreveram sobre os 20 quilômetros que Mamdani fez a pé na campanha, falando com pessoas de vários bairros, em várias línguas, incluindo espanhol e bengali, e sobre como foi inteligente o uso que fez das redes sociais.
Mamdani não fez memes, nem vídeos engraçados, mas com conteúdo político. Nos vídeos, olha-nos nos olhos e fala sobre os problemas da vida em Nova Iorque — o custo do cabaz básico das compras, o preço do bilhete do metrô, a loucura das rendas, a necessidade de tornar a cidade mais acessível, mais razoável, mais equilibrada. Com isso, foi fácil aos jovens que o seguiam falar dele aos pais e avós — os vídeos eram simples e tinham ideias.
Claro que todos escreveram sobre as ideias de Mamdani. Há quem diga que são “ideias malucas”, “ideias socialistas” e Donald Trump, claro, disse que são “ideias lunáticas e 100% comunistas”. Todos concordam que são ideias ambiciosas e caras. Serão realistas? Mamdani diz que o custo das rendas das casas aumentou 52% nos últimos anos e quer congelar as rendas do milhão de nova-iorquinos que vive em apartamentos com rendas controladas (há um vídeo no TikTok onde mergulha nas águas frias de Coney Island para falar do “congelamento” das rendas); quer criar uma rede de autocarros públicos gratuitos e tornar as creches gratuitas. Quase tudo vai parar à palavra affordable — os preços têm de ser mais acessíveis.
Como é que Mandami propõe fazer isto? Aumentando os impostos dos ricos e dos super ricos.
Nova Iorque é a cidade com mais bilionários do mundo: 123 pessoas têm um património líquido de 759 mil milhões de dólares (dados da Forbes), entre as quais está o comediante Jerry Seinfeld, um dos últimos a entrar no ranking. Por curiosidade, Moscou é a segunda cidade do mundo com mais bilionários: 90 pessoas têm 409 mil milhões de dólares. Hong Kong é a terceira.
Claro que a ameaça de fuga dos super ricos já começou. Bill Ackman, bilionário, gestor de hedge-funds, ex-democrata e fã de Trump, ofereceu-se para financiar alguém do “centro” que se candidate contra Mamdani. Foi ele quem disse que, “se 100 dos maiores contribuintes optassem por passar 183 dias noutro lugar, isso poderia reduzir as receitas fiscais do Estado e da cidade de Nova Iorque entre cinco a 10 mil milhões de dólares — e isto só no meu sector”. Disse também que há “centenas de milhões de dólares” disponíveis para apoiar um rival de Mamdani.
A fuga é uma possibilidade, mas em 2013, quando Bill de Blasio foi eleito prefeito com base numa plataforma de tributação dos ricos, houve ameaças, mas os magnatas ficaram. Como previsível, há entusiastas e detratores dentro do partido e basta ver o que disseram sobre Mamdani antigos membros da equipa de Barack Obama. Uns falam da necessidade de falar sobre os problemas das pessoas e de estar próximo das pessoas, outros dos perigos da “radicalização do partido”.
Na Europa, temos lentes diferentes. Dos 27 Estados-membros da União Europeia (UE), 13 têm mecanismos de controle de rendas e, na última análise às economias e finanças públicas da UE, a Comissão Europeia recomendou que, entre outras medidas, “Portugal devia considerar […] a implementação de medidas de regulação das rendas para proteger os grupos mais afetados”, na linha da “habitação primeiro”.
Ainda sobre as ideias: numa cidade com um milhão de muçulmanos e um milhão e meio de judeus, a guerra Israel-Hamas foi um dos temas centrais da campanha.
Mamdani apoia o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções contra Israel; acredita que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, deve ser preso; usa a palavra “genocídio” para descrever o que Israel está a fazer em Gaza e está sempre a dizer que antissionismo não é antissemitismo. Mas defende que Israel tem o direito de existir como Estado e tem denunciado sistematicamente o antissemitismo.
Com isto, ganhou inimigos e amigos, muitos dos quais judeus. O New York Times escreveu esta semana sobre o grande apoio que tem na comunidade judaica e citou Jay Michaelson, colunista do jornal judaico The Forward, que disse que Mamdani “atraiu nova-iorquinos judeus de todos os tipos”.
Também todos contaram que a sua mãe, Mira Nair, é uma realizadora de cinema premiada — fez Monsoon Wedding, The Namesake e Mississippi Masala —, e o seu pai, Mahmood Mamdani, é professor de Antropologia na Universidade de Columbia. Contaram que Mamdani foi rapper, estudou numa escola pública no Bronx, licenciou-se no Bowdoin College, no Maine, em Estudos Africanos, onde co-fundou a secção de Estudantes para a Justiça na Palestina e que, a seguir à faculdade, trabalhou como conselheiro de prevenção de execuções hipotecárias em Queens, ajudando os residentes a evitar o despejo, trabalho que o inspirou a candidatar-se a um cargo público. Foi pela crise na habitação que entrou na política.
De tudo o que foi escrito fica uma alegria. Estamos há anos à espera da nova geração de políticos à esquerda capazes de mobilizar e eis que aparece Mamdani. A fórmula é um socialista hipster? Veremos. Certo é que a liderança do Partido Democrata está envelhecida, em muitos casos ultrapassada, acomodada, fechada em escritórios e comícios artificiais, presa aos favores e aos hábitos. Mamdani é brilhante, optimista e autêntico, tem uma linguagem simples e próxima, é carismático e representa frescura.
Pode não ganhar as eleições, será muito difícil, mas já valeu pelo abanão.
(Transcrito do PÚBLICO)