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    As pétalas coloridas da última flor do Lácio (Por Fernanda Hamann)

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    Quando me mudei para Lisboa, escutei de um conterrâneo: ‘A gente sai do Brasil, mas o Brasil não sai da gente’. De fato, nunca me senti tão brasileira quanto em Portugal, sob os olhares que prestam mais atenção à minha nacionalidade do que a qualquer outro dado da minha existência.

    Mas agora que vim visitar o Brasil, tenho também a impressão contrária: a gente sai de Portugal, mas Portugal não sai da gente. O que prova que o nosso país de destino, ao lado do nosso país de origem, acaba por fazer parte de quem nos tornamos.

    Aqui no Brasil, Portugal se revela em mim nos momentos mais prosaicos. Quando estou num boteco e pergunto onde é a “casa de banho”. Ou quando me irrito no engarrafamento, e a interjeição que brota nos meus lábios é: “Fogo!”

    O léxico de Portugal já habita os meus hábitos, ampliando o vocabulário da língua portuguesa que me habitava desde criança — o meu idioma materno, em que aprendi a dizer “Eu te amo” à minha mãe. Mas, nos primeiros meses como imigrante em Lisboa, eu tinha a sensação bizarra de assimilar uma língua estrangeira, enquanto tentava dialogar com pessoas que falavam (teoricamente) a mesma língua que eu.

    É tensa e intensa a relação linguística entre brasileiros e portugueses: uma corda bamba entre a diferença e a semelhança, entre a distância e a proximidade, entre o estranhamento e a identificação.

    Por um lado, portugueses acolhem os sotaques do Brasil nas telenovelas, nas canções, nas peças de teatro. É no campo da criação artística que o “brasileiro” conquista espaços e corações. Não por acaso: por meio da arte, as pessoas experimentam o prazer libertário de perceber que há muitas formas possíveis de falar, de viver, de existir.

    E, no caso da língua portuguesa, chamada por Olavo Bilac de “a última flor do Lácio”, as suas pétalas se espalham também por Angola, Moçambique, Cabo Verde e outros territórios, cada qual com as suas gírias, a sua musicalidade, a sua criatividade própria.

    Por outro lado, a capacidade de valorizar essa pluralidade linguística parece desconhecida pelos falantes mais conservadores e obsessivos, fixados ao gozo policialesco de denunciar o que está errado nas palavras alheias. A pretensão de manter uma língua pura e incorruptível é uma ambição inútil e reducionista.

    Inútil, porque toda língua é viva, e é inevitável que ela sofra alterações em tempos e sítios distintos. E reducionista, porque ignora a riqueza do que se pode representar ou inventar com uma maior diversidade de vocábulos, fonemas, variações gramaticais.

    Enquanto a maioria dos puristas insiste em conservar a língua portuguesa numa gaiola supremacista, a maioria dos linguistas sabe da importância de ampliar e atualizar as gramáticas e os dicionários. Porque as palavras dançam nas bocas de todos nós. E expandem constantemente o repertório de dizeres à nossa disposição, como um tapete de pétalas coloridas que fertilizam o solo do nosso imenso jardim.

     

    (Transcrito do PÚBLICO-Brasil)