O aumento de cibercrimes contra crianças e adolescentes tem levado autoridades de diversas frentes a buscar saídas para um combate mais efetivo do que a repressão desses ilícitos e especialistas da área estão em sintonia em apontar a prevenção como o principal caminho para conter o avanço dessas violações.
Embora não seja um fenômeno novo, o aliciamento de menores por meio da internet ganhou novas proporções nos últimos anos, impulsionado pelo crescimento das redes sociais, da cultura dos “desafios” e do acesso precoce à tecnologia.
A pandemia de covid-19, que manteve milhares de jovens em casa, também é apontado como fator que contribuiu para esse cenário ao aumentar o tempo de exposição de jovens em ambientes digitais, muitas vezes sem supervisão.
Para autoridades que lidam com o tema ouvidos pela coluna, a atuação repressiva, embora necessária, tem se mostrado insuficiente diante da velocidade com que os crimes se propagam no ambiente digital. A resposta, segundo elas, deve começar muito antes -dentro de casa, na escola e por meio da atenção e fiscalização de pessoas do círculo mais próximo.
Em grupos de mensagens, fóruns e perfis anônimos, criminosos se infiltram no mundo digital e aproveitam a ausência de mediação adulta, além da vulnerabilidade emocional de alguns jovens, para manipulá-los.
Relatos comuns nesses meios dizem respeito a crimes como aliciamento, extorsão sexual (chamado de “sextorsão”), incitação à automutilação, discursos de ódio e desafios virtuais com potencial muitas vezes letal. Casos de adolescentes que tiram a própria vida após serem vítimas de chantagem ou abuso também têm sido cada vez mais frequentes.
Muitas dessas violações ocorrem em plataformas onde o anonimato, a lógica algorítmica e a ausência de mediação favorecem a atuação de grupos organizados. Como mostrou a coluna, uma das características de grupos de cibecriminosos é justamente sua pulverização em vários espaços da internet.
Atenção dos pais
Embora muitas das vítimas sejam aliciadas e manipuladas dentro do alcance dos pais, por meio de aparelhos como computadores e celulares utilizados em casa, especialistas evitam qualquer discurso que busque culpados. O foco, dizem, deve estar na orientação e no cuidado ativo.
“Quando o pai e a mãe deixam o filho 15 horas trancado dentro de um quarto mexendo na internet, acham que está tranquilo, isso é um sinal de alerta total. E o que é o controle parental? Não é vigiar. É um lado de amor, de cuidado. É supervisionar, sim, o que está vendo na internet”, afirma Alesandre Barreto, coordenador do Laboratório de Operações Cibernéticas do Ministério (Ciberlab) do Ministério da Justiça (MJ).
Da mesma forma, Barreto defende que a criança sempre “dá sinais” de que algo pode estar errado, e é preciso prestar atenção. Alguns exemplos, que podem ser observados tanto pela família como na escola, é o excesso de telas.
Ele também cita outros comportamentos que devem acender alertas: “Alguns sinais chamam a atenção. Um deles é a automutilação. Sinais de se cortar, se automutilar. Outro é o maltrato contra animais. Primeiro começa a pegar no ratinho, depois o gato, o cachorro. A criança dá sinal. Talvez o pai e a mãe não consigam enxergar, mas ela dá sinal”, completa.
Uma abordagem no sentido de instruir pais e responsáveis já vem sendo aplicada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), por meio do Núcleo de Prevenção à Violência Extrema (NUPVE). Desde 2024, o núcleo realiza formações e acompanha casos com potencial de escalada de violência.
O “Projeto Sinais”, carro-chefe da iniciativa, treina profissionais da educação, saúde, segurança pública e familiares para identificar padrões de risco em adolescentes. Ele também destaca a importância da articulação entre diferentes setores.
“Nós temos trabalhado com as redes, com os órgãos de segurança, com as escolas, com a rede de proteção à criança e adolescente, para passar para elas aquilo que a gente vai chamar de sinais, aquelas pequenas pegadas que esse nosso adolescente vai dando quando vai se infletindo para o caminho da violência extrema”, conta Costa.
O projeto é pioneiro no Brasil, e integrantes articulam uma reprodução em outros estados. Segundo Costa, a ideia, apesar de paradoxal, é abordar de forma analógica um problema digital.
“Temos desafios tecnológicos absurdos. Os nossos adolescentes têm uma capacidade tecnológica infinita, inclusive para apagar seus próprios rastros. Como é que a gente tenta superar essas dificuldades tecnológicas? Investindo no analógico. A nossa proposta é que o humano faça o que sempre fez de melhor: cuidar de humanos”, afirma.
Somente neste ano, até junho, o núcleo coordenado pelo procurador registrou 123 ocorrências mapeadas. No período, foram realizadas 33 capacitações, que alcançaram 176 municípios gaúchos.
Outro aspecto atrelado à prevenção é destacado por Lisandrea Colabuono, chefe do Núcleo de Operações e Articulações Digitais (Noad) da Polícia Civil de São Paulo.
Para ela, a violência experimentada pelas crianças tende a acompanhá-las pelo resto da vida, deixando marcas psicológicas. Dessa forma, ela defende que atuar na prevenção de abusos evita que os jovens de hoje venham a ver reflexos disso quando adultos.
“Eu diria que a gente está formando uma geração que está vindo aí das nossas futuras vítimas de violência doméstica. Eu não tenho a menor dúvida. Essas meninas que estão sendo vítimas hoje, elas são as minhas futuras vítimas de violência doméstica”, afirma.
Na área jurídica, o advogado criminal Paulo Klein, que já atuou em casos de crimes cibernéticos, reforça que a prevenção também passa pela formação desses jovens.
Segundo ele, muitos dos adolescentes envolvidos em situações de risco não têm orientação mínima sobre os limites legais ou os impactos emocionais da exposição on-line.
“A gente precisa discutir educação e prevenção, porque repressão, aumento de pena, nunca foi e nunca será meio de evitar que crimes sejam praticados. Isso é uma falácia”, declara. “Nosso problema passa pela educação dos menores, e sobretudo dos pais, da importância do monitoramento e do uso limitado de internet”.
Klein também chama a atenção para o papel das plataformas e cita a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu pela responsabilização de redes sociais por conteúdos de usuários.
Segundo a decisão, as plataformas podem responder por publicações mesmo antes de uma notificação judicial. Além disso, há também o chamado “dever de cuidado”, em que as plataformas dever remover proativamente alguns conteúdos sensíveis, como aqueles que envolvem, por exemplo, pornografia infantil, tráfico de pessoas e indução ao suicídio e automutilação.
“Isso [a decisão do Supremo] é algo muito relevante e que eu acho que vai causar um grande impacto na mudança de como a internet vai ser utilizada. Na medida em que aquela plataforma que contém um conteúdo inadequado, se ela não tirar do ar, eventualmente poderá ser responsabilizada. E isso é inédito no Brasil”, conclui,