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Cadastro rural era fraudado por grileiros para fugir de multas; veja

Cadastro rural era fraudado por grileiros para fugir de multas; veja

Uma investigação da Polícia Federal (PF) que mira grileiros de terras da União no Pará destrinchou como o grupo se valia de alterações e fraudes no Cadastro Rural Ambiental (CAR) para burlar a fiscalização de órgãos de proteção ambiental e lucrar com as terras griladas.

As estratégias usadas para a falsificação dos dados iam desde a redução ou deslocamento da representação da área com as coordenadas geográficas (chamada tecnicamente de polígono), a alteração do nome de fazendas para “cancelar” o CAR, até o afastamento fictício de áreas de embargo ambiental.

Os investigados, segundo a corporação, manipulavam esses dados declarados no sistema para esconder desmatamentos, burlar multas e até conseguir empréstimos públicos, usando a própria terra grilada como garantia.

O Cadastro Ambiental Rural é um registro obrigatório para todas as propriedades rurais no Brasil. Criado para integrar informações ambientais das propriedades, ele é essencial para políticas públicas, como a concessão de crédito agrícola, e também serve como repositório de informações sobre esses territórios para o governo.

Por ser autodeclaratório, cabe ao proprietário fornecer as informações para o cadastro -o que, se feito de forma fraudulenta, pode configurar crimes como falsidade ideológica.

A PF destaca, para além do caso concreto investigado, que esse tipo de mecanismo tem estimulado um verdadeiro mercado clandestino que lucra com a manipulação de dados de georreferenciamento e de informações da propriedade.

Segundo a investigação, isso pode ser realizado a partir de dois métodos principais: o preventivo e o interventivo.

No primeiro, a propriedade é manipulada no sistema antes que o crime ambiental seja detectado, com deslocamento ou redução do tamanho da área cadastrada para despistar futuras autuações ou bloqueio de atividades (que pode ser desencadeada, por exemplo, por um desmatamento indevido). O objetivo é que o espaço da propriedade deixe de coincidir com a área desmatada.

No segundo, após já terem sido autuados por infração ambiental, os envolvidos alteram os dados no sistema para tornar mais difícil o rastreio ou continuidade do processo administrativo.

Essas alterações, diz a PF, prejudicam diretamente os órgãos ambientais, já que, na hipótese de um fiscal tentar identificar uma área autuada com base nas coordenadas geográficas, pode não encontrar nenhuma propriedade correspondente, como se ela nunca tivesse existido.

Ou seja, a prática acaba impedindo ou dificultado a responsabilização dos infratores e a abertura de novas investigações.

Além disso, a corporação também aponta para o impacto econômico das fraudes, uma vez que o documento é exigido para liberação de créditos rurais.

É o caso dos grileiros investigados, que se valiam de uma estrutura fraudulenta, que também incluía fraudes em processos no Incra e uso de laranjas, para ter acesso a dinheiro público usando terras ocupadas ilegalmente como garantia.

Fazendas analisadas

A PF analisou diversas dessas áreas com indícios de fraude no CAR, dentre elas a Fazenda Talismã. Por meio de um software para processamento de dados geoespaciais, foi possível identificar uma série de mudanças, algumas quase imperceptíveis, nas informações da terra.

A fazenda foi registrada em 2021 e, logo após, houve embargos do Ibama em áreas próximas. Segundo a PF, “chama a atenção o fato de a fazenda em comento possuir rotas para as três áreas embargadas (todas por desmatamento sem autorização do órgão competente)”.

A seta amarela aponta para o formato após a retificação, quase que imperceptível na imagem. A linha verde pontilhada indica a área da fazenda antes da retificação, em 2024, depois de diversos embargos na mesma área.

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Imagem da Fazenda Talismã que consta em relatório da PF

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Imagem da Fazenda Talismã que consta em relatório da PF

Reprodução/PF

Outro caso escrutinado pela investigação é o da Fazenda Teresópolis. Segundo a PF, em 2021, o polígono da fazenda foi reduzido de 1514,42 hectares para 43,87 hectares. Além disso, também foi deslocada para mais de 6 quilômetros da localização inicial

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Imagem da Fazenda Teresópolis que consta em relatório da PF, antes da retificação

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Imagem da Fazenda Teresópolis que consta em relatório da PF, depois da retificação

Reprodução/PF

Mesmo depois dessa retificação, houve mais quatro mudanças no registro da fazenda. A última delas, em 23 de agosto de 2022 (com duas retificações no mesmo dia), reduziu a zero o tamanho da área.

Ainda, o nome da fazenda foi alterado para “FAZ_TERES_CANCELAR”.

Já na Fazenda Araçá, registrada em 2016 e retificada pela última vez em 2021, foi possível identificar a “diminuição abrupta da área do imóvel”. A alteração, segundo a PF, não só diminuiu a área de 250,84 para 2 hectares, como também deslocou o polígono em 4,5 quilômetros (em linha reta).

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Imagem da Fazenda Araçá que consta em relatório da PF, antes da retificação

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Imagem da Fazenda Araçá que consta em relatório da PF, depois da retificação

Reprodução/PF

Uma quarta Fazenda, a Manaca, passou por pelo menos duas retificações com indícios de fraude. Ela foi registrada em 2017 e, depois da data, houve uma série de embargos do Ibama por desmatamento em áreas próximas à terra.

A última retificação, de 2021, reduziu a área do imóvel de 9,21 hectares para 4,08 hectares, e ainda deslocou o polígono da fazenda para 18,4 quilômetros de distância, indicando que a localização da fazenda seria em uma espécie de ilha.

“É nítida a intenção de apagar ‘o rastro’ da Fazenda em local próximo ao dos embargos, burlando, desta forma, a fiscalização ambiental”, diz a PF.

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Imagem da Fazenda Manaca que consta em relatório da PF, antes da retificação

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Imagem da Fazenda Manaca, que consta em relatório da PF, próxima a áreas de embargo

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Imagem da Fazenda Manaca que consta em relatório da PF, depois da retificação

Reprodução/PF

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Esquema em seis etapas

Como mostrou a coluna, o esquema era dividido em seis fases: a primeira era a criação de processos falsos no Incra. Os documentos eram produzidos com numerações inexistentes e aleatórias.

A partir da fraude na documentação do Incra, o grupo criava “uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”.

Essas terras eram posteriormente comercializadas ou serviam como garantia para a obtenção de empréstimos bancários. Segundo a PF, foi possível mapear ao menos R$ 24 milhões em empréstimos.

A apuração também mostrou que o grupo se valia de “laranjas insconscientes” para levar a fraude adiante. Isso se dava por meio do uso de informações de terceiros, que sequer sabiam ser parte do esquema.

Com isso, o grupo fazia com que os laranjas figurassem como supostos proprietários originários dos títulos de propriedade, despistando indícios de envolvimento dos grileiros.

“Além das irregularidades nos números dos processos, foi verificada a utilização indevida dos dados de pessoas reais, que figuraram como ‘laranjas inconscientes’, sem o seu consentimento ou conhecimento”, afirma a PF em documento da operação à qual a coluna teve acesso.

Fases do esquema de grilagem investigado pela PF

Imperium Fictum

A investigação sobre grilagem no Pará se dá no âmbito da operação Imperium Fictum, que também determinou o bloqueio de R$ 600 milhões dos suspeitos. São investigados os crimes de organização criminosa, corrupção, falsidade ideológica, uso de documento falso, grilagem de terras públicas, lavagem de dinheiro e fraude contra o sistema financeiro nacional.

No relatório final da corporação, ao qual a coluna teve acesso, a PF indiciou oito pessoas supostamente envolvidas no caso. Um deles é Debs Antônio Rosa, apontado como líder do esquema e um dos principais articuladores das fraudes.

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