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Dicionário amoroso do Brasil escrito por um francês apaixonado

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Dicionário amoroso do Brasil escrito por um francês apaixonado

Existe um dicionário dos apaixonados pelo Brasil, mas diferentemente do que o título sugere, o autor é um só, embora os modos de amar sejam múltiplos. Nesses dias de brio brasileiro ferido, fui atrás do dicionário que o francês Gilles Lapouge compôs para declarar seu amor desbragado pelo Brasil, intensamente vivido durante 70 anos, desde que esteve no país pela primeira vez, nos anos 1950, até sua morte, cinco anos atrás.

De cara, fiquei com ciúme. Como um francês sabe tanto e viajou tanto e conversou tanto com brasileiros de tudo quanto é canto? E como ousa declarar seu amor desmesurado em 70 verbetes, 333 páginas, e muitas viagens desde São Paulo, cruzando o cerrado, desembocando na Amazônia e no Nordeste? Quem lhe deu esse direito? Pergunta essa brasileira que ama brasileiramente.

Como tudo que é movido pela paixão, o dicionário tem um roteiro meio aleatório, mas percorre temas cruciais  – da extensão do território à escravidão, da exploração extrativista de nossas riquezas às contradições de nosso caráter, da cor do boto da Amazônia às 136 cores de nossa pele mestiça, de nossa amorosidade à nossa crueldade, de nossa glória à nossa tragédia.

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É um dicionário apaixonado mas não é um dicionário cego de paixão. Abre nossas feridas mais fundas, de um jeito amoroso, às vezes surpreso, às vezes divertido, às vezes atordoado, muitas vezes poético.

Começa assim: “Amei por muito tempo o Brasil, e ainda o amo. Convivo com ele há sessenta anos. Eu o visito, falo com ele. Trocamos ideias, lembranças, ironias. Ele me conta histórias. Quando estou longe, ouço sua respiração, escrevo ou lhe telefono”. O Brasil, em Gilles Lapouge, não é um país, é um estado d’alma que ele encontrou aqui e que nunca mais quis perder.

Pois se há uma coisa brasileira que ferve sobre a superfície desse imenso território, é o gosto pela vida, um fervor de viver, um atrevimento de existir, uma audácia de seguir adiante, tudo o que o francês apaixonado encontrou em terras brasileiras logo depois do fim da Segunda Guerra, quando a Europa combalida e amargurada se arrastava para tentar se manter viva.

Lapouge morou no Brasil apenas três anos, no começo dos anos 1950. Veio para trabalhar como jornalista no Estadão. Voltou para a França, porém continuou a publicar textos no jornal paulista até perto de morrer, aos 96 anos, e voltou às terras brasileiras incontáveis vezes. Tudo no Brasil atiçava a curiosidade do francês, a terra, o clima, o povo, as plantas, os bichos, a história, os falares, as crenças, as grandes glórias e as grandes tragédias.

Percorre o Brasil profundo e as três capitais, Salvador, Rio de Janeiro, Brasília. No mundo todo, ele escreve, “uma capital é um livro de história”. Mesmo no Brasil, as duas primeiras capitais são, cada uma, um livro. Menos Brasília, ele diz. A nova capital do Brasil “joga fora os calendários” e nasce do dia pra noite.

“Para edificar essa cidade imensa, o Brasil sangra por todos os lados, mas é com entusiasmo que ele se sacrifica. Milhares de rapazes e moças correm para os canteiros. Brasília é, ao mesmo tempo, a nova fronteira e a utopia do Brasil”.

Juscelino tinha o dinheiro, Lucio e Oscar, o talento, e os dois conseguiram cumprir com louvor a missão impossível, constroem uma cidade encantada. “Em alguns momentos, quando iluminada pelo Sol ou pela Lua, a cidade parece flutuar como flutuam os sonhos”, escreve, referindo-se ao Plano Piloto.

Mas, observa Lapouge, os brasilienses “não demonstram alegria”. E com toda razão: “Como passear e viver em uma cidade sem calçadas, uma cidade que detesta os pedestres, que nos obriga ao uso do carro, e na qual não existem bairros nem ruelas, nem becos nem escadas, mas somente ruas sem nome?”.

O francês recorre, então, a um poema de Nicolas Behr, que ele considera “erótico”:

O porteiro do bloco I da 103 Sul
pegou a filha do síndico do bloco
O da 413 Norte com o cara do
302 do bloco D da 209 Sul
dentro do carro do zelador do
bloco F da 314 Norte

Chamar de “erótico” um poeminha leve como esse é mesmo não saber o significado de erotismo para o brasileiro. Aliás, em todo o dicionário do francês apaixonado há um indisfarçável encanto pelo despudor dos nativos desse país desnudo. Compreende-se, portanto, a razão de um dos verbetes ser dedicado a Chica da Silva, a escrava preta que subjugou o homem mais rico das minas de ouro (o Brasil foi o maior produtor do minério nesse tempo).

Nós, os que aqui nascemos e vivemos, temos certa dificuldade em nos ver por inteiro. Estamos dentro da coisa, somos parte dela. Um francês apaixonado consegue com menos dificuldade, porque não perde a racionalidade sem perder a paixão: “[O Brasil] É um país exagerado, onde tudo é excessivo. As paisagens, as cores, os sons, os terrores. Tudo é mais brilhante, assustador, confuso e majestoso; tudo é mais vazio ou mais fervilhante do que em outro lugar”.

Ou inesperadamente encantador: certo dia, o francês está deitado sob o Sol impiedoso de uma praia do Nordeste, quando sente uma sombra sobre si. Uma garota com uma sombrinha tenta proteger o branquelo de uma insolação e ainda o repreende. A “Menina de Sombrinha” é um dos verbetes do livro.

O dicionário tem algumas imprecisões, fruto da memória, esse recurso traiçoeiro, mas nada que diminua o calor procedente da paixão – dizem que o amor tem a capacidade de perceber o que nenhum outro sentimento consegue.

Ainda enciumada, me senti mais brasileira depois de ler o Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil (Amarilys, 2014). Lançado originalmente na França em 2011, recebeu um título mais bonito e preciso: Dictionnaire amoureux du Brésil (Dicionário Amoroso do Brasil). A declaração de amor do francês é um enlevo para os brios brasileiros feridos.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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