Toda vez que você viaja e precisa pagar para despachar bagagem, está cumprindo uma determinação da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
O órgão regulador, que tem como função proteger o interesse do consumidor, também já decidiu fechar todos os postos de atendimento presenciais nos aeroportos. Teve um problema com seu voo? A agência só recebe queixas por meio digital.
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Tem mais: as reclamações são feitas na plataforma Gov.br, e não em um canal próprio da Anac, o que significa que são misturadas a todas as outras, de todos os assuntos direcionados ao governo.
Precisa remarcar um voo e tem que pagar quase o preço da passagem para isso? Também é uma autorização da Anac. Comprou um bilhete e quer transferi-lo para o nome de outra pessoa? É a Anac quem proíbe essa possibilidade.
Medidas “anticonsumidor” como essas não são exclusivas da Anac. O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (que reúne Procons, Secretaria Nacional do Consumidor — do Ministério da Justiça —, Ministério Público e associações de consumidores) tem listado inúmeras decisões que atendem mais às empresas do que aos clientes.
As decisões são tomadas pelas diretorias colegiadas das agências, compostas por indicados de senadores. Quando os nomes chegam ao Senado para análise, já está tudo acordado para aprovação. Nos cargos, os diretores atuam de acordo com os interesses dos padrinhos políticos.
“É assustadora a quantidade de problemas que as pessoas levam à Justiça para discutir coisas que, na verdade, são regras impostas pelas agências. Elas são uma gigantesca porta giratória para políticos e para gente que quer trabalhar no setor empresarial. Chega a ser vergonhoso, constrangedor, absurdo”, disse Igor Rodrigues Britto, do Idec, maior associação de consumidores do país.
É comum que, ao fim do mandato de cinco anos, esses dirigentes sejam empregados pelas empresas que deveriam fiscalizar — prática conhecida como “porta giratória”.
Agência tentou acabar com as bulas impressas nos remédios
Recentemente, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) desobrigou a indústria farmacêutica de colocar bulas impressas nos medicamentos. Os cinco diretores entenderam que seria bom para o consumidor ter que buscar na internet a informação sobre o remédio que irá consumir e que seria bom para as empresas deixarem de ter esse custo.
A medida só não foi implementada porque o Idec entrou na Justiça e conseguiu derrubar a decisão colegiada.
O lugar mais seguro para comprar medicamentos continua sendo as farmácias
A mesma Anvisa adiou por mais de quatro anos uma discussão para que as empresas de alimentos incluíssem nos rótulos um alerta indicando o excesso de nutrientes críticos à saúde, como alto teor de açúcar.
A agência deu um prazo de três anos para as empresas se adaptarem e, horas antes do fim do prazo, em 22 de abril de 2024, a diretoria resolveu, sem critério técnico, atender ao pedido das empresas para adiar por mais um ano a medida.
A medida só entrou em vigor porque o Idec recorreu à Justiça e conseguiu derrubar o novo prazo.
Anatel autorizou operadoras de telefonia a acabar com atendimento presencial
Nem sempre a Justiça reverte decisões que impactam diretamente a vida dos consumidores. A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) desobrigou as operadoras de telefonia de manter lojas físicas para atendimento. Está com problemas na sua linha telefônica, a internet não funciona, recebeu cobrança indevida? Acione o “0800”.
As operadoras que ainda mantêm lojas físicas o fazem porque querem, e não mais por obrigatoriedade.
A Anatel, que tem como atribuição defender os direitos dos consumidores de telefonia, também permitiu que as operadoras bloqueiem totalmente o serviço após 20 dias de atraso no pagamento da conta — alterando a própria regra anterior, que previa o corte total apenas após 30 dias.
Loja da TIM
A diretoria da Anatel autorizou, ainda, que as operadoras alterem os contratos com seus clientes durante a vigência. O primeiro entendimento da agência foi o oposto, mas houve um recuo que atendeu à demanda das operadoras.
Nomeado em dezembro de 2022, o advogado Alexandre Freire chegou à Anatel sem qualquer experiência no setor. Antes, foi assessor jurídico do ministro do Supremo Dias Toffoli, assessor especial da presidência do STF e assessor parlamentar da Comissão de Orçamento do Congresso.
O Idec tentou afastar Freire da relatoria do chamado RGC (Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações), demonstrando sua relação próxima com o jurista Ricardo Campos, que atuou como parecerista a favor da anulação dos pontos questionados pelas teles. Mas o conselho entendeu que não havia impedimento.
Farmácias exigem CPF para dar desconto e vendem os dados
Outra prática recorrente é as farmácias obrigarem o consumidor a informar o CPF para obter descontos em medicamentos. A ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) ainda não aplicou nenhuma medida punitiva, apesar de já ter declarado, em nota, as várias irregularidades no tratamento dos dados fornecidos pelos consumidores.
“Essa prática é considerada abusiva, pois fere os direitos dos consumidores, que não devem ser obrigados a fornecer informações sensíveis para obter descontos ou benefícios”, afirma o Idec.
ANS permitiu planos de saúde a aumentarem mensalidades
Responsável por fiscalizar os planos de saúde, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) autorizou empresas em dificuldades financeiras a aumentarem as mensalidades de contratos individuais e familiares acima do teto da própria ANS.
A agência também estuda autorizar a venda de planos de saúde sem cobertura para terapias, internações hospitalares e atendimentos de urgência e emergência — desvirtuando o conceito de plano de saúde. Trata-se de uma demanda antiga das operadoras.
Segundo o Idec, isso significa que, se a pessoa precisar de atendimento de emergência ou internação, terá que recorrer ao SUS (Sistema Único de Saúde), mesmo tendo plano de saúde.
Empresas punidas não pagam multas aplicadas pelas agências
As agências reguladoras podem punir as empresas com multas e até com a caducidade de contratos, nos casos de concessões. Relatórios do TCU (Tribunal de Contas da União) mostram, contudo, que as multas raramente são cobradas, pois as empresas recorrem à Justiça e os órgãos reguladores não impõem outras sanções.
Um levantamento do site Poder360 apontou que, em onze agências reguladoras, há R$ 23 bilhões em multas aplicadas nos últimos anos e ainda não recebidas. Algumas dessas multas foram aplicadas há mais de 20 anos. Somente a ANS tem R$ 7,6 bilhões a receber de operadoras de planos de saúde.
A Enel, companhia de energia que atua em São Paulo, por exemplo, tem multas que somam meio bilhão de reais sendo discutidas na Justiça. Nos casos dos apagões em São Paulo, nos últimos dois anos, o governo e o ministro Alexandre Silveira (Minas e Energia) chegaram a falar publicamente em decretar a caducidade do contrato, mas a Aneel concluiu que não há elementos para afirmar que a empresa descumpriu o acordado.
A Aneel chegou a sugerir condicionar a renovação dos bilionários contratos de concessão ao pagamento das multas, mas a área técnica da agência concluiu que não seria possível a vinculação, uma vez que as empresas têm direito de questionar os valores nas esferas administrativa e judicial.
Bancos, teles e setor de viagens lideram queixas na Justiça
Levantamento do Valor Econômico mostrou que bancos, operadoras de telecomunicações e o setor de viagens lideraram o ranking de reclamações registradas no ano passado, segundo balanço da plataforma consumidor.gov.br, do governo federal.
De um total de 1,2 milhão de reclamações registradas por consumidores, empresas reguladas como operadoras de telecomunicações (182.526), viagens, turismo e hospedagem (116.384), comércio eletrônico (100.260) e transporte aéreo (95.737) estão entre as mais criticadas.
Entre os principais problemas relatados pelos consumidores estão: cobrança indevida, propaganda enganosa e mau atendimento.
Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram que empresas reguladas nesses setores também são responsáveis por grande parte das ações judiciais.