Por trás de cada música tocada em festas juninas, num clube ou num shopping, existe um artista que merece ser remunerado. E, nos meses de junho e agora em julho, vários estados brasileiros se transformam com arraiais que movimentam cidades, escolas, praças e ruas, ao som de forró, baião, xote e quadrilhas.
Mas, é justamente a música, elemento essencial dessa tradição popular, que está no centro de uma discussão urgente: o respeito ao direito autoral.
O que pouca gente sabe é que, toda vez que uma música toca em espaço público ou evento coletivo, é necessário pagar os direitos autorais de execução pública aos compositores e artistas, por meio do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad).
Não importa se a trilha sonora vem de um trio pé de serra, de um DJ ou de uma playlist no celular: se a execução não for exclusivamente familiar, a remuneração é obrigatória.
Mesmo assim, em pleno 2025, prefeituras e produtores seguem inadimplentes com os pagamentos. Segundo levantamento do próprio Ecad, as festas juninas de Campina Grande (PB) e Petrolina (PE), duas das maiores do Brasil, estão há anos sem pagar corretamente pelos direitos autorais.
Por outro lado, exemplos como os festejos de São João de Caruaru (PE) e Maracanaú (CE) mostram que é possível fazer grandes eventos com responsabilidade cultural e legal.
Ambas as cidades cumprem a lei e fazem o licenciamento musical junto ao Ecad, garantindo que compositores e artistas sejam devidamente remunerados.
A inadimplência ainda gera prejuízo direto aos criadores, principalmente àqueles que não sobem ao palco, mas têm as obras como trilha sonora das celebrações.
“Infelizmente, muitos organizadores dessas celebrações, que movimentam milhões e atraem turistas do país inteiro, não respeitam os direitos dos artistas. Com isso, os compositores deixam de receber valores que são seus por direito”, afirma Giselle Luz, gerente regional do Ecad na Paraíba e em Pernambuco.
O músico brasiliense Marcelo Café, que vive da circulação da própria música, complementa: “O músico também é classe trabalhadora. Existe uma lei que precisa ser cumprida sobre o que ele produziu. Não é só criatividade, é trabalho, é tempo, é estudo”.
Segundo dados do Ecad, as festas juninas poderiam ter distribuído até 50% mais em direitos autorais se todos os eventos fossem regularizados.
Só em 2024, R$ 5,9 milhões foram pagos por execuções ligadas ao São João. Esse valor poderia ser o dobro se a inadimplência não fosse tão alta.
“Não pagar os direitos autorais é como apagar o nome de quem criou a música que você está usando para fazer sua festa brilhar.”
Marcelo Café
Lei que garante justiça cultural
O Ecad é uma entidade privada, sem fins lucrativos, prevista na Lei nº 9.610/1998, que regula o direito autoral no Brasil.
O papel dela é fazer a intermediação entre quem usa música publicamente e quem a cria.
É um modelo de economia colaborativa, pois quem utiliza a obra de outra pessoa contribui financeiramente, e o valor arrecadado é distribuído entre compositores, intérpretes, músicos, editores e produtores fonográficos.
Para artistas que vivem da criação musical, o não pagamento dos direitos autorais representa muito mais do que prejuízo financeiro – é uma negação de existência.
O compositor Zé Maurício, coautor de Isso é Fundo de Quintal, com Leci Brandão, reforça: “Se uma música toca 100 vezes e você nem sabe, como o autor vai sobreviver? O Ecad é o que nos dá um fio de retorno. Se não tiver, a gente some da própria história”.
“Quando a música estoura, os primeiros seis meses são lindos. Depois, vai caindo. É por isso que o direito autoral é tão importante: ele garante uma continuidade, uma dignidade para o compositor”, enfatiza Zé Maurício.
“Tem muita festa por aí cantando nossas músicas e não recolhendo nada. A gente se sente esquecido, apagado da própria história.”
Zé Maurício
Números do Ecad
Em 2024, o Ecad arrecadou R$ 1,8 bilhão e distribuiu R$ 1,5 bilhão para 345 mil titulares de direitos.
Do total arrecadado, 85% foram repassados diretamente aos compositores, intérpretes, músicos, editores e produtores fonográficos.
Os 15% restantes foram destinados à gestão coletiva: 6% para as associações de música (Abramus, Amar, Assim, Sbacem, Sicam, Socimpro e UBC) cobrirem as despesas operacionais e 9% para o Ecad, responsável pela administração, arrecadação e distribuição dos valores em todo o país.
A música brasileira foi protagonista: 62% do valor distribuído foram para o repertório nacional. E, no segmento de shows e eventos, a arrecadação cresceu 20% em relação a 2023, puxada justamente por eventos populares, embora muitos ainda estejam inadimplentes.
“Com transparência, estamos construindo uma entidade mais sustentável, eficiente e digital. Nosso objetivo não é inviabilizar nenhuma festa, mas assegurar que os compositores sejam valorizados como parte essencial da cadeia produtiva cultural”, afirma Isabel Amorim, superintendente executiva do Ecad.
Tecnologia a favor da justiça
Com o apoio de ferramentas tecnológicas, o Ecad identificou 6,6 trilhões de execuções musicais em plataformas digitais só em 2024.
O uso de dados e inteligência artificial permite um rastreio mais justo e eficaz, fortalecendo a cadeia produtiva da música, tanto no ambiente digital quanto nos festejos presenciais.
“Execução pública não é só cobrança. É reconhecer o valor de quem cria, proteger o ciclo da obra e garantir que o artista possa continuar criando”, explica a advogada Carol Bassin, especialista em projetos culturais e direitos autorais.
Esse processo de digitalização também se reflete no contato com os usuários. Ferramentas como o EcadNet e canais de autoatendimento agilizam o processo de licenciamento, pois oferecem praticidade e transparência para quem precisa regularizar o uso de música.
A tecnologia, segundo o Ecad, é uma aliada estratégica. Por meio de softwares avançados, algoritmos de reconhecimento musical e parcerias com plataformas de streaming, a instituição consegue mapear onde, como e com que frequência cada música é utilizada.
Isso permite uma distribuição mais precisa e proporcional aos artistas, inclusive àqueles que não têm visibilidade na grande mídia.
Mais do que uma obrigação legal, o pagamento de direitos autorais é um gesto de valorização. É o que mantém a cadeia produtiva da música aquecida, assegura a renda de milhares de famílias e perpetua a diversidade sonora do Brasil.
“A música tem dono. E reconhecer esse dono é o mínimo que se espera de uma sociedade que valoriza sua cultura”, enfatiza Isabel Amorim.