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    O lawfare contra as universidades públicas (por Daniel Conceição)

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    Desde 2012, minha família vive um pesadelo. Ao longo de mais de uma década, sentimos na pele alguns dos efeitos mais destruidores que o Lawfare pode produzir. Meu pai, o ex-reitor Carlos Levi, é uma das vítimas de um caso de perseguição judicial assustador, mas sobre o qual ainda não se fala muito. Um caso que agora precisa ficar conhecido pela sociedade para que injustiças como essa nunca mais ocorram em nosso país.

    Mesmo muito antes de uma eventual punição injusta, o Lawfare destrói suas vítimas. Reputações são assassinadas. Espíritos são destruídos. Como uma cicatriz invisível, uma matéria espetaculosa no Fantástico selou, para muitos, a falsa imagem pública que lutamos para desfazer até hoje. Apoiado em nada além de acusações irresponsáveis, o programa dominical anunciou para todo o país que meu pai e quatro ex-dirigentes da UFRJ haviam participado do desvio de cerca de 50 milhões de reais da Universidade. Amigos e vizinhos deixaram de falar conosco. Tivemos que fazer ligações para parentes preocupados. Boatos se espalharam pela internet.

    Em 2019, quando veio a inacreditável condenação em primeira instância — baseada em interpretações grotescamente equivocadas de documentos oficiais — o peso se tornou quase insuportável.

    O suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier foi algo que nos atravessou com dor crua. Pela primeira vez, compreendi visceralmente o que leva alguém a tomar uma decisão tão extrema. Além do mártir Cancellier, já conhecíamos outra vítima fatal do Lawfare contra as Universidades brasileiras. Aloísio Teixeira, nosso amado reitor, sofrera infarto fulminante em 2012 quando as perseguições jurídica e midiática começaram a se tornar esmagadoras.

    Hoje, dos cinco ex-dirigentes da UFRJ atingidos pelo Lawfare, todos carregam marcas profundas. Dois sobreviveram a infartos. Outros definharam. Doenças autoimunes e cânceres apareceram. A saúde de todos se deteriorou com velocidade assustadora.

    Mas a ferida maior é a da injustiça.

    A acusação caluniosa e a condenação tecnicamente insustentável

    Em 2007, uma reportagem sensacionalista do jornal O Dia acusava a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) de “sumir com R$ 50 milhões” de recursos vinculados ao contrato nº 52/2007 com o Banco do Brasil. Pouco depois, a mesma denúncia chegou ao Tribunal de Contas da União (TCU), Controladoria Geral da União (CGU) e Ministério Público Federal (MPF). O autor da denúncia era Agnelo Maia, ex-professor da UFRJ, conhecidos por suas posições extremistas e preconceituosas. Esse homem, exonerado por agressão a um estudante durante a gestão de Aloísio Teixeira, encontrou no Ministério Público Federal (MPF) ouvidos simpáticos ao seu projeto de vingança — e, com acusações mentirosas, deu início a uma perseguição judicial brutal contra aqueles que haviam defendido a universidade pública contra ele e seus aliados, removendo-os do comando da Faculdade Nacional de Direito (FND).

    A denúncia de Agnelo se referia a um contrato (Contrato 52/2007) entre a UFRJ e o Banco do Brasil, com participação da Fundação José Bonifácio (FUJB) como gestora financeira e prestadora de apoio administrativo. Negociado por Aloísio Teixeira para lidar com o constrangimento financeiro historicamente enfrentado pela UFRJ, o contrato previa a transferência de cerca de 40 milhões de reais pelo Banco do Brasil à Universidade, ao longo de cinco parcelas anuais, em troca da oportunidade do banco oferecer, com exclusividade, serviços bancários aos seus milhares de servidores professores e técnicos.

    Como ocorre sempre em centenas de universidades brasileiras, os recursos foram classificados pela procuradoria da UFRJ como extraorçamentários (não advindos do financiamento federal à educação superior), de modo que deveriam ser administrados integralmente por alguma fundação de apoio universitária. Nesse caso, a FUJB, fundação de apoio devidamente credenciada pela UFRJ, ofereceria seus recursos administrativos para desenvolver cada um dos mais de mil projetos financiados com os recursos dados pelo BB (inclusive alguns projetos de enorme porte, como a construção de um Restaurante Universitário da Ilha do Fundão).

    Graças ao Contrato, cerca de mil eventos acadêmicos, quatrocentas obras de pequeno, médio e grande porte, e diversas ações de fortalecimento institucional foram realizadas. Mesmo que não se pudesse ver o riquíssimo legado material deixado pela UFRJ por tantos projetos, todos os seus custos, inclusive com a gestão financeira e administrativa prestada pela FUJB, foram plenamente comprovados junto ao TCU ao longo de um exaustivo processo de Tomada de Contas Especial, onde restou comprovado o uso de cada centavo para o benefício da Universidade.

    Mesmo assim, como a denúncia vingativa de Agnelo Maia motivou investigações pelos órgãos de controle (TCU, CGU e MPF) a justiça recomendou que a FUJB interrompesse sua atuação de gestora de projetos mesmo antes da conclusão do contrato. Por este motivo, a última parcela do contrato acabou executada como se os recursos fizessem parte do orçamento ordinário da Universidade, sem o apoio administrativo da Fundação. Desta feita, ao invés de financiarem projetos com o apoio da estrutura robusta e especializada da FUJB, a última parcela (e o “saldo livre” da penúltima) foi transferida à Conta Única do Tesouro Nacional. Por esta razão, projetos de maior complexidade (como editais de eventos acadêmicos e grandes obras) deixaram de ser contemplados e o restante dos recursos acabou incorporado ao orçamento ordinário burocratizado da UFRJ, sujeito, inclusive, aos contingenciamentos ocasionados pelas políticas de austeridade do governo federal.

    Foi essa interrupção extemporânea da atuação da FUJB como gestora financeira e administrativa do contrato antes do seu final que provavelmente acabou produzindo o grave equívoco que levou a juíza de primeira instância a condenar pessoas inocentes por um suposto crime de peculato. Como de praxe, os recursos destinados ao financiamento dos projetos apoiados através do Contrato 52/2007 ficavam em conta específica, sob a responsabilidade da FUJB, a quem cabiam os procedimentos de efetuação de pagamentos, controle e prestação de contas. Em decorrência da sua saída como gestora financeira antes do fim do contrato, restou uma quantia na conta (cerca de R$ 2,4 milhões) a ser devolvida pela FUJB à UFRJ.

    Para que não reste dúvida sobre o erro primário contido na sentença de primeira instância, a FUJB passou a dever um “troco” à UFRJ, pois havia restado um “saldo livre” que acabou não sendo utilizado pelos motivos citados acima. Como o saldo constante na conta da FUJB era da UFRJ, cabendo à fundação apenas administrar os recursos em nome da Universidade, qualquer valor restante na conta naturalmente seria devolvido à UFRJ. Assim, a FUJB identificou o troco que devia á UFRJ e o valor foi inteiramente restituído, com as devidas correções legais. Tudo absolutamente normal, legal e legítimo!

    Inacreditavelmente, a juíza Caroline Figueiredo, da 7ª Vara Criminal, interpretou equivocadamente os documentos oficiais do TCU, e concluiu que a devolução deste “troco” era prova do que o valor havia sido usado indevidamente e/ou desviado. Ao ler o acordão do TCU onde o “troco” era calculado e descrito, a juíza entendeu que o TCU tivesse determinado que a FUJB devolvesse a “taxa de administração” (de cerca de R$ 1,8 milhão), legitimamente paga pela UFRJ para cobrir os custos da gestão financeira e administrativa dos mais de mil projetos (salários de seus funcionários, compras de materiais, etc.), por considerar que os custos desses serviços não haviam sido comprovados.

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    Ao contrário do que entendeu a juíza, o TCU, CGU e AGU reconheceram a regularidade do pagamento criminalizado

    Em julgamento técnico e objetivo, o Acórdão 856/2014 do TCU julgou regulares as contas de Aloísio Teixeira e Carlos Levi. A Controladoria-Geral da União (CGU), por sua vez, afirmou categoricamente no Parecer nº 294/2012 que todos os recursos foram aplicados em benefício da UFRJ, com comprovação de custos e compatibilidade com os objetivos do contrato. A Advocacia-Geral da União (AGU), por meio do Parecer 02/2023-CFEDU/PGF/AGU, reafirmou a legalidade do uso de fundações de apoio na gestão dos recursos e reconheceu sua natureza extraorçamentária, tornando inquestionavelmente legítima a contratação da FUJB, além de esclarecer os vários erros da sentença de primeira instância.

    Assim, três instâncias federais — o órgão de controle externo (TCU), o órgão de controle interno (CGU) e a assessoria jurídica da União (AGU) — confirmaram: não houve dolo, não houve desvio, não houve prejuízo à UFRJ.

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    A sentença que ignora provas da defesa e inventa culpados

    Mesmo diante desse consenso técnico, a sentença de primeira instância contrariou, ou não soube interpretar, todos os pareceres e julgados dos órgãos de controle. Dentre os muitos erros primários contidos na sentença destacam-se:

    •          Confundir as pessoas ocupantes de cargo de reitor durante a assinatura e vigência do Contrato. Carlos Levi é tratado na sentença como reitor à época da celebração e execução do contrato, quando na verdade o reitor era Aloísio Teixeira.

    •          Todos gastos com os projetos financiados através do Contrato 52/2007 foram avaliados e aprovados pelo Conselho Universitário da UFRJ e seus custos comprovados junto ao TCU.

    •          O valor devolvido pela FUJB à UFRJ, por determinação do TCU, não tinha qualquer relação com a taxa de administração mais do que justamente cobrada pela Fundação pelos serviços custosos prestados à Universidade. O TCU apenas indicou que o valor restante na conta da Fundação, corrigido monetariamente, fosse devolvido à Universidade. Em nenhum momento o TCU cogitou questionar a legalidade do pagamento da taxa de administração.

    •          Os pareceres da AGU e CGU, além do acórdão do TCU, afastam qualquer imputação dolosa, necessária para configurar o crime de peculato.

    A decisão em primeira instância chegou ao cúmulo de afirmar que os réus “não lograram êxito em comprovar a destinação pública de mais de 40 milhões de reais”, quando, na verdade, esse valor teve sua aplicação detalhada e auditada exaustivamente pelo TCU, com mais de mil projetos executados — muitos deles ligados à assistência estudantil, à infraestrutura da universidade, e à construção do enorme Restaurante Universitário da Ilha do Fundão.

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    Conclusão: quando a Justiça erra, a verdade precisa gritar

    O caso em tela é emblemático de um fenômeno cada vez mais comum no Brasil: a judicialização enviesada da política universitária. Movido por uma denúncia de origem ideológica, vingativa e pessoal, o processo evoluiu para um julgamento que desconsiderou provas, ignorou laudos técnicos e impôs condenações que beiram o absurdo jurídico.

    Os erros primários constantes na sentença revelam um problema estrutural: quando o Judiciário decide fechar os olhos para a verdade e abrir os braços ao punitivismo preconceituoso, a injustiça se disfarça de zelo pela coisa pública.

    Não se trata apenas de uma injustiça contra ex-dirigentes da UFRJ. A injustiça imposta a eles é uma agressão à autonomia universitária, à verdade institucional e à memória do professor Aloísio Teixeira, falecido antes de ver seu nome limpo pelo TCU.

    Se há algo a ser reparado, é essa sentença. E se há algo a ser dito, é que nem todo juiz faz justiça — e nem toda sentença deve ser aceita em silêncio.