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“Obviamente de aparência africana”: quando o preconceito vira opinião

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“Obviamente de aparência africana”: quando o preconceito vira opinião

Foi num post breve (que foi apagado com a repercussão), mas carregado de camadas, que Marcelo de Carvalho, vice-presidente da Rede TV, resolveu expor mais do que um relato pessoal. Ele revelou um pensamento estruturado sobre quem, para ele, representa o perigo. Dizia que o irmão de seu filho mais velho havia sido assaltado em Barcelona. E não parou por aí. Escreveu que o autor do crime era “obviamente um sujeito de aparência africana, dos milhões que a Europa deixou entrar”. E arrematou dizendo que, ao tentar “salvar os muçulmanos africanos”, a Europa acabaria sendo destruída por eles.

Quem lê esse relato sem senso crítico talvez pense que se trata apenas de um desabafo motivado por raiva. Mas não é. Há um raciocínio por trás. E o raciocínio é perigoso porque reforça estigmas históricos e trata como ameaça a existência de pessoas negras e imigrantes. Ele não fala de um criminoso, ele fala de um povo inteiro, colocando todos na mesma vala, com base unicamente em traços físicos.

O mais grave é a palavra “obviamente”. Não há nada de óbvio. O que existe ali é um julgamento superficial, apressado e, acima de tudo, preconceituoso. No post seguinte, tentando contornar a repercussão, Marcelo escreveu que a pessoa poderia ser de aparência japonesa, eslava ou até viking. Como se fosse possível comparar as consequências reais de se ter aparência africana na Europa com qualquer outro grupo étnico. Como se essa frase tivesse o poder de limpar a primeira.

É preciso dizer com clareza: esse tipo de comentário não nasce do acaso, ele se apoia num imaginário social construído durante séculos. Para entender o porquê de tantos africanos migrarem para a Europa, não dá para ignorar o passado colonial. E a Espanha, país onde o assalto aconteceu, tem suas responsabilidades. Foi colonizadora de partes do norte da África, como a Guiné Equatorial, o Saara Ocidental e o norte do Marrocos. Não foi apenas uma ocupação territorial. Foi invasão, exploração econômica, apagamento cultural, repressão religiosa.

Muitas das pessoas que hoje enfrentam travessias marítimas perigosas, que vivem em abrigos improvisados ou que ocupam postos de trabalho precários na Europa estão, direta ou indiretamente, fugindo de feridas abertas por esses processos coloniais. Feridas que nunca foram tratadas, reparadas, muito menos curadas.

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Migrar não é uma escolha leve. É o que se faz quando não há mais onde fincar os pés. Quando a guerra, a fome, a perseguição política ou a pobreza forçam a partida. E grande parte dessas causas foram alimentadas pelas potências coloniais europeias. A Europa não está sendo invadida. Está sendo cobrada por uma dívida histórica que insiste em ignorar. E ao acolher essas pessoas, não faz favor. Assume, ainda que tardiamente, uma responsabilidade que ajudou a construir.

Marcelo de Carvalho poderia ter usado seu espaço para refletir. Para perguntar o que faz alguém cruzar um continente em busca de segurança. Para ouvir, em vez de concluir. Mas escolheu reforçar a caricatura que criminaliza o outro, o que tem a pele mais escura, o que fala outra língua, o que não se encaixa em seu padrão de normalidade.

Esse pensamento, escamoteado de opinião, tem consequências graves. Alimenta políticas de deportação em massa, reforça abordagens policiais seletivas, justifica fronteiras fechadas e violências naturalizadas. É esse tipo de mentalidade que leva ao silêncio quando corpos afundam no Mediterrâneo, ou quando barracas são queimadas em acampamentos de refugiados. O que Marcelo escreveu não é só uma frase infeliz. É parte de um projeto maior de desumanização.

A Europa não vai acabar por acolher africanos. Ela corre mais risco quando esquece que sua riqueza foi construída com base no sangue, na força e na expropriação de outras terras. A verdadeira ameaça está na cegueira histórica e na arrogância moral de quem ainda acredita que pode apontar o dedo para os mesmos povos que um dia ajudou a arruinar.

Quando alguém com espaço na mídia usa sua visibilidade para esse tipo de discurso, é preciso reagir. Não com ódio. Mas com firmeza. Com a lembrança de que por trás de cada migrante existe uma história. E que nenhuma delas começa por “obviamente”.

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