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    Outros “nós contra eles”

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    O discurso do “nós contra eles” é um truque político comum, um caminho previsível, que facilita reconhecer aliados e adversários. Serve para mobilizar bases e, sobretudo, esconder os donos das crises, da concentração de riquezas e da exploração ilimitada da natureza – os super-ricos.

    Há no caso brasileiro uma pequena mudança no sentido do discurso. Se durante as eleições de 2022 adotou-se a rivalidade entre democratas e totalitários, voltamos ao inescapável conflito de classe entre ricos e pobres, ainda que consciência de classe seja artigo raro. É o retorno da assinatura dos primeiros governos petistas que, com os avanços e investimentos sociais, consolidou a imagem da legenda, ainda que pesem as acusações de corrupção.

    Para parte da esquerda mais crítica e menos eleitoreira, é só discurso, e Lula nada mais faz que um governo de centro-direita, tese defendida até pelo ex-ministro José Dirceu. Para esses grupos, Lula barra o fascismo e ao mesmo tempo impede que reivindicações mais profundas e estruturais cheguem ao debate político. O exemplo de 2022 volta: a defesa da democracia, urgente na época, barrou a discussão de que democracia nós queremos. Mesmo assim, enfim o presidente abraçou a defesa da taxação dos ricos e o fim da escala 6×1, pautas urgentes, que incitam respostas violentas no país dos privilégios.

    O aconteceu em Torre Pacheco, cidade da região de Murcia, na Espanha, corrobora com o argumento do primeiro parágrafo. Em 9 de julho a mídia espanhola divulgou o caso de um idoso foi brutalmente agredido por “jovens que falavam língua estrangeira”. Alimentados pelo discurso de ódio da extrema-direita, no caso do partido Vox, grupos organizados pelas redes sociais iniciaram na cidade uma “caça a imigrantes”, definição oferecida pelo ministro do Interior espanhol. Armados com paus ou barras de ferro eles vêm assombrando as noites da cidade em busca de pessoas de origem norte-africana.

    Vai explicar que imigrantes não roubam empregos, porque simplesmente eles ocupam as vagas com menores salários em trabalhos agrícolas e serviços pesados e que, segundo a OCDE, imigrantes contribuem mais em impostos do que recebem em benefícios sociais. E que a invasão de árabes e africanos se traduz em uma taxa de 6% de população da UE (dados de 2023), que se mantém nos últimos anos. Esse discurso aponta um culpado para a precarização do trabalho, dos sistemas de saúde e educação, pelo desemprego entre jovens, pela concentração de renda, pela falta de representação em democracias dominadas pelo mercado. E que as feridas abertas do colonialismo e a violência do neocolonialismo sejam esquecidas.

    Ainda que tenha o racismo comum, é um fenômeno diferente do “nós contra eles” sionista, que constrói e cultiva o ódio aos árabes. Um movimento europeu que também se aparta dos judeus que já viviam naquelas terras. São todos outros. Há mais de sete décadas, uma política sistemática de tomada de casas e assassinatos. É evidente que ninguém quer a morte de civis de ambos os lados. Mas o que resta para os oprimidos quando não há diálogo? Ao fim, os ataques terroristas alimentam o discurso nacionalista da extrema-direita.

    ‘Em Gaza, acontece um dos processos de desumanização mais rápidos da História”, dizem os autores de ‘Um léxico da brutalidade’, o sociólogo Assaf Bondy e o historiador Adam Raz. Eles reuniram cerca 150 palavras e expressões cotidianas, como “despovoamento” ou “animais humanos”, que ajudam a justificar o genocídio. E validar a manutenção do poder da extrema-direita e sua agenda expansionista. E fortalecer a presença dos EUA na região.

    Ao recordar os primeiros governos Lula, seu “nós contra eles” é um discurso eleitoral de um mandato sem rosto que, pressionado pelo centrão e pela extrema-direita, deu uma piscada à esquerda. Na Espanha, como em boa parte da Europa, arregimentar os descontentes e desesperançados para que a estagnação prevaleça enquanto a extrema-direita se fortalece. Em Israel, unir o país contra os palestinos para esconder que o verdadeiro inimigo é interno.