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    “Pensamento digitalizado” (por Mary Zaidan)

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    Não é banal que alguém assuma, em juízo, a autoria de um crime. Muito menos planos para “neutralizar” os vencedores da eleição de 2022 e o magistrado tido como algoz do bolsonarismo. Interrogado na quinta-feira, o general da reserva Mário Fernandes admitiu que escreveu o plano para matar o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o vice Geraldo Alckmin e o ministro da Suprema Corte Alexandre Moraes, intitulado “Punhal Verde Amarelo”. Era “pensamento digitalizado”, minimizou, cravando mais uma pérola nos fartos anais do cinismo nacional. No mínimo, considerou a Justiça tola.

    General de brigada desde 2016, ostentando 4 estrelas, Fernandes era visto como linha dura. Fazia parte da alta cúpula do Exército, tendo chefiado o Comando de Operações Especiais, os kids pretos, de 2018 a 2020, quando passou para a reserva. É réu do chamado núcleo 2 da trama golpista, que reúne o grupo operacional. Tido na denúncia da Procuradoria-Geral da República como um dos expoentes mais radicais, o militar está preso preventivamente desde novembro do ano passado.

    Secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência da República no governo do ex, mantinha relações próximas a Bolsonaro, sendo recebido com frequência na residência oficial do Alvorada. Segundo a Polícia Federal, foi lá que ele esteve pouco tempo depois de imprimir uma das três cópias do plano Punhal Verde Amarelo, seu “pensamento digitalizado”.

    O militar não explicou as cópias múltiplas em dias diferentes, e jura que rasgou de imediato a impressão de seus pensamentos que, talvez por ativação telepática, foram colocados em curso, como aponta a denúncia da PGR, com base nas investigações da PF.

    Com riqueza de detalhes, a peça da acusação traz pormenores da operação planejada. Desde a compra de celulares frios para os agentes de campo que integravam o grupo Copa 2022 com os codinomes Alemanha, Argentina, Áustria, Brasil e Gana, e se comunicavam através da rede Sigma, à vigia dos alvos. Por meio de monitoramento do GPS desses aparelhos, foi possível verificar a movimentação para liquidar Moraes, ação abortada porque no dia D o ministro do STF mudou os seus planos, seus horários e o seu caminho.

    Réus raramente assumem atos pelos quais são acusados. Bolsonaro inaugurou a fila quando admitiu, em juízo, ter discutido possibilidades para contestar as eleições de 2022. Mas “dentro da Constituição”, disse. Também não negou que realizou reuniões para debater uma eventual decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), embora não houvesse motivo para tal, até porque as únicas perturbações que o país assistia vinham de seus apoiadores, não raro incitados por seus fiéis – militares ou não. Tudo bem estudado por sua defesa, combinando admissão com cores de legalidade.

    Assim como o ex-comandante dos kids pretos, os réus general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o ex-diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, alegaram o teor estritamente pessoal de documentos golpistas encontrados entre seus pertences. Defesa bamba quando confrontada com outros pontos da peça acusatória. Com o general Mário Fernandes foi ainda pior.

    O plano Punhal Verde Amarelo e a impressão eram incontestáveis. Estavam no seu equipamento e nos registros da impressora que ele usou dentro do Palácio do Planalto. Era forçoso admitir a autoria. Ao ser interrogado, agiu como se fosse admissível planejar um triplo assassinato – elaborar, organizar, digitalizar e imprimir. Algo que não se faz nem em pensamento.

    Ainda que com menos holofotes que deveria ter tido para tal comprovação de crime – talvez devido à avalanche deflagrada pelas absurdas sanções de Donald Trump ao Brasil ou pela espetacularização da tornozeleira eletrônica do ex -, a admissão de culpa de Fernandes não deixa dúvidas sobre a gravidade da trama golpista.

    Ela corrobora as investigações da PF e a denúncia da PGR, desnuda a desfaçatez dos golpistas e expõe com maior clareza os riscos que o país correu. O que o “pensamento digitalizado” do general revela é que para anular as eleições e revogar a democracia valia eliminar, neutralizar, assassinar, matar.

    Diante disso, espera-se que a Justiça, por vezes tola, como no enfrentamento figadal de Moraes com Trump, tenha olhos para ver.

     

    Mary Zaidan é jornalista