A radicalização de adolescentes em ambientes digitais e a multiplicação de crimes cibernéticos envolvendo menores de idade levam autoridades da área de segurança pública e justiça no Brasil a redobrarem a atenção ao que está acontecendo on-line.
Com isso, ameaças a escolas, apologias a ideologias violentas, incitação ao suicídio e à automutilação, abusos sexuais virtuais e comportamentos extremistas de jovens em redes sociais passaram a ocupar espaço central nas investigações e estratégias de prevenção.
Um dos órgãos que tem dedicado especial atenção a esses casos é o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), que criou Núcleo de Prevenção à Violência Extrema (NUPVE) para monitorar essa tendência e implementar ações de prevenção.
O núcleo é coordenado pelo Procurador de Justiça Fábio Costa Pereira, que adota uma visão diversa do senso comum ao abordar o envolvimento de jovens com a radicalização no ambiente digital. Ele defende que a ideologia propagada por grupos e redes extremistas é um fator secundário, e não o que motiva esses jovens a aderirem a discursos de ódio ou terem atitudes violentas.
Segundo Pereira, a avaliação de que jovens vitimizados por criminosos estão sendo cooptados por ideologias radicais simplifica e distorce a origem do problema. “O ódio que é vertido nas redes, ele não é causa. Ele é sintoma”, afirma.
Sua avaliação vem dos inúmeros grupos identificados nas redes que disseminam discursos preconceituosos para milhares de crianças e adolescentes, além de muitos se identificarem com correntes com o nazismo, ou até satanismo.
Ele afirma, no entanto, que por trás de discursos de ódio e ameaças, há quase sempre histórias de abandono, isolamento e sofrimento psíquico.
“Os nossos adolescentes que vivem por esse caminho são muito infelizes. É como se eles gritassem por um pedido de atenção”, afirmou em entrevista à coluna, pontuando que sua avaliação se restringe a sua experiência dentro do MP, com casos que chegam até o núcleo.
A radicalização, explica Pereira, não é unicamente motivada por convicções políticas ou religiosas. Trata-se, antes, de uma tentativa de jovens darem forma a um mal-estar interno.
“Eles vão buscando nesse mundo digital uma resposta simples para um problema complexo. Então eles se vestem da máscara do ódio”, afirma.
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Segundo o procurador, o que poderia parecer uma crença ideológica, para esses jovens é, na verdade, uma fantasia identitária: “No universo deles, que vivem no mundo digital e são avatares, não tem nenhum tipo de antagonismo lógico. Eles podem ser qualquer coisa que quiserem.”
“E essas ideologias extremistas, não importa qual, para eles não têm nenhum antagonismo. É o que se chama de buffet de salada. Eles podem ser qualquer coisa”, completou.
Esse padrão aparece de forma caricata em alguns casos analisados pelo Ministério Público, em que muitas vezes jovens se identificam com ideologias ou correntes políticas que possuem claras divergências.
“A gente estava com um caso agora em que o adolescente se definia como nazista maoísta”, relata. “Se a gente tentar entender o universo dos nossos adolescentes sobre a nossa ótica do século XX, com certeza a gente está fora do mercado”, disse.
Pereira explica que o espaço digital oferece uma espécie de refúgio simbólico, onde os adolescentes assumem identidades radicais como forma de acalmar a própria angústia. Isso se daria porque tais discursos tendem a servir como agregadores entre integrantes de um mesmo grupo.
“A vida interna deles é uma bagunça. Quando põem uma doutrina totalitária, seja o nome que for, eles acalmam aquela angústia porque ele consegue uma resposta. Olha, se eu odiar grupo ‘x’, eu estou fazendo a coisa certa. Ele precisa acalmar aquela alma que borbulha ódio”, argumenta.
Ele também destaca que o ciclo da violência não começa com o crime: muitas vezes, os próprios agressores foram vítimas. “Os adolescentes [com casos no MPRS] que perpetraram, em algum momento foram vítimas também”.
Foi visando a identificar e atuar nesses casos antes que a violência aconteça, que o Ministério Público do Rio Grande do Sul criou o Núcleo coordenado por Pereira. Apesar de atuar na via repressiva, o “carro chefe” da iniciatia -que é pioneira no Brasil -é o “Projeto Sinais”.
O objetivo desse projeto é ampliar o conhecimento da sociedade sobre os inúmeros sinais que a criança ou adolescente apresenta quando passa a se envolver com redes criminosas no ambiente digital.
Pereira afirma que ele são diversos, mas que sempre aparecem antes da “explosão” desses comportamentos externamente, com atos mais radicais. Alguns citados são isolamento social, o desinteresse pelas relações do mundo real e o consumo obsessivo de conteúdos violentos são pistas recorrentes.
Somente em 2024, o núcleo registrou 158 eventos com potencial de violência extrema no estado — 41 deles considerados graves. Foram cumpridos 24 mandados de busca e apreensão, além de 13 internações (6 de adolescentes e 7 psiquiátricas), além de 4 prisões. Em 2025, até junho, já foram mapeadas 123 ocorrências, com 22 mandados de busca e 4 novas internações.
O “Projeto Sinais” também treina educadores, profissionais da saúde, agentes de segurança e familiares para reconhecer comportamentos de risco e agir de forma precoce.
“Ao capacitar alguém que tem uma relação de proximidade com o adolescente, eu permito que muito mais precocemente ele perceba que esse adolescente está se radicalizando”, explica o procurador.
O projeto tem como diferencial a simplicidade metodológica e o foco em quem está mais próximo dos adolescentes. “Nosso grande esforço preventivo é no analógico. A proposta é que o humano faça o que sempre fez de melhor: cuidar de humanos.”
Apesar dos esforços, Pereira reconhece os desafios colocados pela realidade digital e aponta a adaptação dos jovens às novas tecnologias como um agravante.
“Eles migram [de redes sociais] com muita facilidade. São muito fluídos nesse ponto. Com uma capacidade tecnológica muito maior do que a gente.” Para ele, muitas vezes o erro na prevenção está em voltar a atenção somente às grandes plataformas, esquecendo de redes sociais menores, com menos moderação.
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Leia abaixo trechos da entrevista com Fábio Pereira:
A radicalização de jovens na internet está mesmo ligada à ideologia?
O ódio que é vertido nas redes, ele não é causa. Ele é sintoma. Eu estou falando do meu recorte, dos meus adolescentes [cujos casos chegam ao MPRS], que não encontram um sentimento de pertencimento no mundo real e buscam no mundo digital. Eles vão buscando nesse mundo digital uma resposta simples para um problema complexo. Então eles se vestem da máscara do ódio.
E essas ideologias extremistas, não importa qual, para eles não tem nenhum antagonismo. É o que se chama de buffet de salada. Eles podem ser qualquer coisa.
Então, por exemplo, a gente estava com o caso agora em que o nosso adolescente se definia como nazista maoísta. Se a gente tentar entender o universo dos nossos adolescentes sobre a nossa ótica do século XX, com certeza a gente está fora do mercado.
Você consegue conceber de uma forma lógica que uma pessoa, vamos dizer, que um judeu se diga nazista? É isso. É que para nós isso logicamente não tem nenhum sentido. Como um rapaz que é negro pode se dizer supremacista branco? No universo deles que vivem no mundo digital e são avatares, não tem nenhum tipo de antagonismo lógico. Eles podem ser qualquer coisa que eles quiserem.
Porque eles não vivem no mundo real, eles vivem no mundo digital. A gente tenta, num viés da confirmação, buscar uma resposta lógica naquilo que a gente conhece, mas não vai encontrar porque é outro mundo.
Os nossos adolescentes vivem em uma mistura de Matrix, em que o Neo vivia no mundo real, ele só se nutria, com avatar, onde eles podem ser aqueles bichos grandes que voam…. Podem ser qualquer coisa.
Por que discursos extremistas atraem tanto esses jovens?
Porque eles conseguem, no totalitarismo, respostas simples para problemas complexos que eles não conseguem resolver. A vida interna deles é uma bagunça. Quando eles põem uma doutrina totalitária, seja o nome que for, eles acalmam aquela alma, porque ele consegue uma resposta.
Como o Ministério Público chega até esses casos?
Em primeiro lugar, a gente faz buscas ativas dos bancos de dados, do acesso aos boletins de ocorrência gerados pelas polícias. Quando a gente percebe um caso que diga a respeito à violência extrema, a gente age. De outro lado, a rede de apoio e proteção à criança e adolescente, quando percebe que um adolescente está infletindo por esse caminho tortuoso, nos avisa.
Por conta do projeto de Sinais, as escolas nos avisam. Então, a gente tem conseguido chegar muito precocemente no problema. E é óbvio que a gente não abre mão na nossa atuação no universo digital com saber patrulhamento.
E como as plataformas tendem a colaborar?
As big techs são uma ponta do problema. Muitas vezes colaboram, outras vezes não, mas tem aquilo que vão chamar de “micro tech”. Tem um monte de aplicativinho novo que vai aparecendo e os nossos jovens vão migrando. Tem coisa que nunca ouvimos falar, mas que eles usam. Tem também todo o ecossistema gamer, onde eles se comunicam, atuam, interagem […] Eles migram com muita facilidade. Então, eles são muito fluídos nesse ponto. Com uma capacidade tecnológica muito maior do que a gente.
E essas grandes plataformas, no caso, tendem a ajudar, e essas micro plataformas, a gente nem sabe que existem.
O que acontece depois que um caso é identificado?
A gente faz o antes, o durante e o depois. Tentamos acertar com as redes, customizar programas de desradicalização. Porque aquela sementinha do mal tem que sair de dentro dele, e precisa acompanhar depois. É um processo longo e penoso, mas a gente não pode desistir.
O que a gente faz diferente é isso: a gente faz o ciclo completo. O antes, o durante e o depois.
E como evitar que esses jovens cometam atos violentos?
Nosso grande esforço preventivo é no analógico. É paradoxal [por lidar com um problema digital], mas a proposta é que o humano faça o que sempre fez de melhor: cuidar de humanos. Se no mundo digital é difícil achar as pegadas, no mundo concreto, no mundo analógico, é muito mais fácil.
O pai com o filho, no colégio, a pessoa que está no pátio com o aluno, o professor de educação física. O professor de português, de redação, porque eles escrevem, porque eles desenham as angústias deles. É paradoxal de um lado e de outro lado é o simples.
Um dos princípios da investigação é ir do mais fácil pro mais difícil, do mais simples pro mais complexo, do menos custoso pro mais custoso. É o que a gente está fazendo: o simples. Que não é fácil, mas é simples.