Punição, abuso, expulsão. Relatos de pessoas que fizeram parte do grupo religioso intitulado Testemunhas de Jeová — que hoje se consideram vítimas da doutrina — desvendam bastidores cruéis por trás das promessas religiosas de uma vida livre dos “males do mundo atual”, com justiça, paz e harmonia com a natureza.
A coluna foi procurada por pessoas que cresceram na religião e, agora, as definem como uma “seita”. Eles têm em comum a dor de terem tido suas vidas mudadas negativamente pelos preceitos da religião.
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Infância roubada
Quando o homem, que preferiu ser identificado apenas como Rafael, ouviu falar pela primeira vez do grupo religioso ainda era apenas um menino. Todos os dias, encontrava os fiéis no caminho da escola. Em suas palavras, sempre bem vestidos, discretos e, aparentemente, serenos.
“Em um desses dias, me abordaram e me convidaram para conhecer o ‘livro do saber’. Eu tinha por volta de 11 anos. Era só um garoto curioso. Nunca havia participado de rituais religiosos. Assim começou. Um convite simples, envolto em palavras brandas e olhares gentis”, relembrou.
Atraído pelas palavras, Rafael começou a frequentar as reuniões do grupo. Participava de atividades de recreação e entretenimento. Segundo ele, momentos de descontração, mas também uma cobrança sutil — e constante — para que todos fossem assíduos. “Aquilo parecia mais do que uma religião. Era uma estrutura. Um sistema.”
“Logo no começo, eu recebia visitas em casa. Vinham dois servos — um homem e uma mulher. Sentavam, liam, ensinavam. Mas com o tempo, as visitas passaram a ser apenas dele. E foi aí que algo começou a mudar…”
Para Rafael, era apenas um dia comum. Naquela tarde, entretanto, sua vida foi completamente mudada. Com a mãe trabalhando e a irmã na escola, o garoto era visitado pelo servo quando estava totalmente sozinho e vulnerável.
“Ele começou a me tocar, usando as palavras do evangelho. Ele usurpava a minha inocência. Dizia que éramos irmãos, imagem e semelhança de Cristo, e que tínhamos mais em comum do que imaginávamos”, contou.
A cada encontro, a doutrina era misturada à perversidade. Rafael desabafa que, a cada visita, o homem chamava de espiritual o que era crime.
“Mandou que eu ficasse de pé, virou de costas, enquanto falava sobre tempo, crescimento, dizendo que em breve eu seria tão grande quanto ele. De repente, virou como se fosse me abraçar… e foi ali que tudo desmoronou. Senti as partes íntimas daquele homem. Ele se enroscava, e dizia: “Eu vou lhe mostrar”. Tirou a própria camisa, depois tirou a minha.Fiquei sem reação. Era como se meu corpo estivesse ali, mas minha alma já tivesse fugido.”
Rafael foi abusado sexualmente aos 12 anos. Ao término da sessão de horror, ouviu do homem que ele não precisava se preocupar, pois Deus já havia os perdoado.
Ameaças
Depois do crime, as visitas cessaram por uma semana. No entanto, ele retornou, como se nada tivesse acontecido, mas agora munido de ameaças.
“O medo me paralisou. O silêncio se instalou. Em casa, não me sentia em paz. Na escola, perdi o interesse por tudo. Me afastei das pessoas. Me retraí. Tive prejuízos pedagógicos, sociais e emocionais. O trauma virou parte de mim.” “Não recebi convites diferentes de ninguém — a não ser daquele homem. Ele era chamado de professor, e comigo fazia estudos particulares. Dizia que eu era especial, que havia algo em mim.”
Os discursos criaram, na visão de Rafael, o que ele chama de laço oculto. “A voz dele soava mais próxima de Deus do que qualquer outra. Era esse o campo perfeito para a manipulação: o abuso não começou no toque, começou nas palavras.”
“Eles diziam que eu herdaria a terra, que era imagem e semelhança de Cristo. Ele usava essas palavras para me tocar. Para abusar de mim.”
Quando Rafael começou a se afastar das reuniões, os membros da congregação perceberam. “Me perguntaram se estava tudo bem, mas ninguém suspeitava do que realmente havia acontecido.”
Para ele, o mais cruel no sistema é que o agressor sabe exatamente como se proteger: não ameaça diretamente, não grita, não pressiona em público. “Apenas manipula, usando o silêncio da religião como escudo. E a criança, muitas vezes, não sabe nomear o que está sentindo”, destacou.
“Acredito em Deus, não na religião”
“Eu continuo acreditando em Deus, mas não no homem.” Foi essa frase que fez com que Rafael tomasse sua decisão.
“Rompi o véu que separa a fé da religião. Depois de tudo o que vivi, não abandonei a espiritualidade. Mas passei a enxergar com clareza o que foi construído em cima de mentiras e manipulação.”
Após o primeiro abuso, Rafael, ainda garoto, tentou resistir. Se afastou das cerimônias. Evitava os estudos. Não queria mais ser visitado.
“A resposta da organização veio em forma de preocupação disfarçada: sugeriram que outro ensinador me acompanhasse. Eu aceitei — numa tentativa de evitar o anterior. Mas, para minha surpresa, os mesmos artifícios começaram a surgir novamente.”
Rafael revela que o ciclo era basicamente o mesmo. “As palavras eram parecidas. As promessas também. Os toques camuflados, a linguagem do evangelho, as analogias… tudo se repetia. Era como se houvesse um padrão. Um sistema que agia nas sombras.”
“Durante muito tempo permaneci em silêncio, mas este medo tem me feito escravo do passado. Hoje, decidi romper este silêncio, anonimamente, para que as sementes da verdade cresçam e destruam toda perversidade que cauterizam aqueles que exercitam a fé, e creem em Deus”, disse.