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    Sobre gatos e jabutis (por Gustavo Krause)

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    Um dos meus grandes amigos de infância foi um gato. Fofura branca de rabo preto, manso e pacífico, chamado de “pechincha”, não sei exatamente por quê. Presente de um vizinho, um achado pelo valor da gentileza. Sempre que me via triste, choroso pelos cantos da casa, penalizado “pelas trelas” cometidas, ele se achegava e ronronava na linguagem afetiva dos felinos domésticos (família dos “felidae”) que miam quando insatisfeitos ou rugem quando ameaçadores.

    Quando ele se foi, sofri e prometi a mim mesmo que não em apegaria a nenhum animal doméstico. Senti, faz muitos anos, que cães e gatos, conhecidos, atualmente, como “pets”, são capazes de exercer na sociedade humana as funções de companheirismo, divertimento e os benefícios menos visíveis, porém não menos importantes, preencher nossos vazios e estimular nossos afetos.

    A esta altura, o leitor deve estar se perguntando: que papo é esse quando a agenda esteve e está repleta conflitos e incertezas e, no plano nacional o Congresso reina sobranceiro, impondo reveses ao Executivo que, ao fim e ao cabo, têm o custo suportado pela população brasileira?

    Por coincidência, no centro da questão política Governo x Congresso está o setor energético, conta de luz e dois representantes da nossa fauna: o gato e o jabuti. Aí entram em cena o Código Penal e o criativo senso de humor do brasileiro. O parágrafo terceiro do artigo 155 estabelece: “Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico”. E a esperteza delinquente encontra uma forma de subtrair a energia da rede elétrica sem o devido pagamento à distribuidora com ligações clandestinas (furto) e adulterações de medidores ou dispositivos equivalentes (estelionato).

    Ora, a ação delituosa é uma prática que, no caso da energia elétrica, exige habilidades, movimentos silenciosos e furtivos para não serem notados, à semelhança dos gatos, “gatunos”, um felino, ao mesmo tempo, ágil e sensual, capaz de inspirar a denominação de “gato” ou “gata” às pessoas atraentes.

    Mas não fica por aí. O bichano concorrente é “o gato de água” obedece ao mesmo padrão de comportamento delituoso. Em ambos os casos, os prejuízos do crime afetam o patrimônio público, prejudicam as políticas de distribuição e abastecimento, agravam os danos da infraestrutura e afrontam respeito à lei cuja observância assegura a manutenção do estado de direito.

    No mundo da política, porém, o representante mais importante da fauna brasileira é “um réptil de carapaça convexa” conhecido como jabuti. Como entrou e por que entrou na cena, em especial, no Congresso Brasileiro? Na sua origem, está a expressão “Jabuti não sobe em árvore. Se está lá, ou foi enchente ou foi mão de gente”.

    A linguagem popular consagrou um significado especial: quando, ao longo do processo legislativo, os parlamentares se defrontam com um dispositivo estranho ao tema principal do projeto de lei: é um jabuti! A prática é mais comum do que se imagina. Ele está ali quietinho que, em grande medida, contraria legítimos interesses republicanos. Hoje, é um frequente personagem nos embates congressuais

    Em recente episódio, a derrubada dos vetos presidenciais significa a ressureição de robustos jabutis que haviam sido incluídos enquanto tramitava o projeto de lei do marco legal das eólicas offshore. Segundo a Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE) e a Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), os jabutis vão custar, aproximadamente, R$ 197 bilhões ao consumidor longo de 25 anos e, por igual período, um aumento de 3,5% a 9% na conta de luz

    Neste sentido, cabe salientar que uma parte do ônus se alastra pela economia e pune a sociedade com a alta inflacionária. De outra parte, este tipo decisão tem sérios efeitos sobre expectativas e sobre a visão estratégica que apontam o Brasil como um grande protagonista da questão ambiental com a autoridade de quem construiu uma matriz energética limpa, atualmente, ampliada pelas fontes renováveis de energia.

    A rigor, o jabuti é produto da “esperteza” brasileira que ao beneficiar poucos, prejudicam, seriamente, uma população inteira. Não dá para obter a vantagem de poucos representados pela pressão fraudulenta em prejuízo de muitos cujos direitos são difusos e destituídos da força dos grupos de pressão organizados. Os jabutis são inocentes. Culpados são os fraudadores da vontade popular.

    Cabe, ao final, reagir, politicamente, para que “gatos” e “jabutis”, bípedes e engravatados, não comprometam vocação ambiental do país, caso as escolhas políticas se distanciem da dimensão estratégica que o Brasil representa para um mundo em profundas transformações.