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    Turquia prende equipe de revista de humor por suposta charge de Maomé

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    A polícia turca prendeu quatro funcionários da revista satírica LeMan nessa terça-feira (1º/7), por “incitar o ódio e desrespeitar valores religiosos” ao publicar uma charge que, segundo as autoridades, retrataria o profeta islâmico Maomé.

    O caso gerou protestos e ataques contra a sede do periódico, que nega a relação da caricatura com o profeta.

    Na charge em preto e branco, dois homens com asas de anjo flutuam e se apresentam um ao outro: “Salam aleikum, eu sou Muhammad”, diz um. O outro responde: “Aleikum salam, eu sou Moisés”. Ao fundo, vê-se uma chuva de balas e casas em chamas, em uma alusão ao conflito em Gaza.

    As figuras aladas flutuando no céu foram interpretadas por autoridades como sendo o profeta islâmico Maomé e o judaico Moisés.

    Hz. Muhammed’le ilgili aşağılık karikatürün ardından Leman dergisinin ofisinin önünde protesto gösterisi düzenlendi. pic.twitter.com/TjGZOWnluN

    — Millî Gazete (@milligazetecom) June 30, 2025

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    Entre os detidos, estão o cartunista Dogan Pehlevan, o editor-chefe da LeMan, Zafer Aknar, o designer gráfico Cebrail Okcu e o gerente Ali Yavuz também. Mandados de prisão foram ainda emitidos para dois editores que estariam fora do país.

    A LeMan é conhecida por sua postura crítica ao governo e frequentemente se torna alvo da Justiça turca e de grupos conservadores aliados ao regime de Recep Tayyip Erdogan.

    Charge gerou protestos

    Na noite de segunda-feira (30/6), manifestantes ligados a um grupo islâmico atiraram pedras contra a sede da LeMan no centro de Istambul e entraram em confronto com a polícia. O tumulto escalou quando dezenas de pessoas também atacaram um bar que os funcionários da revista costumam frequentar. A polícia usou bombas de borracha para dispersar a multidão.

    Já nesta terça-feira, dezenas de manifestantes realizaram outro protesto após as orações do meio-dia em uma mesquita na principal praça de Istambul, sob forte presença policial. Eles exibiram um cartaz com os dizeres: “Insultar o Mensageiro de Deus e os valores islâmicos não é liberdade de expressão, é islamofobia”.

    Também entoaram cantos como “Não se esqueçam da Charlie Hebdo”, se referindo ao ataque jihadista de 2015 à revista de Paris, quando atiradores mataram 12 pessoas depois que o periódico publicou caricaturas que satirizavam o profeta Maomé.

    “Eu acredito que é um ataque às religiões e aos nossos valores”, disse Ridvan Kaya, líder da associação Ozgur-Der, organizadora do protesto, à agência de notícias AP.

    Erdogan também criticou o que chamou de “desrespeito” ao profeta Maomé.

    “É uma provocação clara disfarçada de humor”, afirmou ele em um discurso na TV. “Aqueles que demonstraram insolência com o Mensageiro de Deus e outros profetas prestarão contas perante a lei.”

    LeMan pede liberdade de expressão

    Em comunicado publicado na noite de segunda-feira, a LeMan negou as acusações e afirmou que a ilustração não retratava o profeta, mas sim um homem muçulmano chamado Muhammad, nome comum cuja grafia é a mesma usada para Maomé, e que a intenção era destacar o sofrimento dos muçulmanos em Gaza.

    A revista pediu desculpas por qualquer ofensa causada, mas também rechaçou o que chamou de campanha de difamação contra a liberdade de expressão.

    A controvérsia reacende o debate sobre a já criticada situação da liberdade de imprensa na Turquia. A organização Repórteres Sem Fronteiras classificou o país em 159º lugar entre 180 nações no Índice de Liberdade de Imprensa de 2025.

    Nesta terça, a Media Freedom Rapid Response (MFRR), uma entidade que monitora violações à liberdade de imprensa, condenou o que classificou como “ataques” contra a LeMan e sua equipe, e pediu às autoridades turcas que protejam os trabalhadores da mídia e garantam a liberdade de imprensa.

    Por que charges de Maomé geram reações?

    Segundo Rauf Ceylan, professor do Instituto de Teologia Islâmica da Universidade de Osnabrück, a indignação com charges de Maomé está profundamente enraizada nos discursos teológicos, históricos e políticos. Ele explica à DW que, em muitas sociedades muçulmanas, qualquer representação visual do profeta é considerada blasfema.

    No entanto, o fator mais determinante para as reações extremas é, segundo Ceylan, de ordem simbólica e política. “As charges não são vistas como liberdade de expressão, mas como um ataque direto à dignidade religiosa, à identidade cultural e à autoestima das comunidades muçulmanas.”

    Ceylan acrescenta que atores radicais conseguem transformar indignação moral em mobilização política. “A simples menção ao nome ‘Muhammed’ é suficiente para desencadear uma onda de indignação religiosa, impulsionada por agentes do Estado”, diz ele.

    A repressão, portanto, envia um duplo recado: a imagem foi reinterpretada como ofensa ao Islã, e a indignação justifica ações policiais contra vozes críticas, defende o especialista.