Portal Estado do Acre Notícias

A política externa de Israel e o paradigma da guerra permanente

a-politica-externa-de-israel-e-o-paradigma-da-guerra-permanente

A política externa de Israel e o paradigma da guerra permanente

Por Wallace de Moraes e Juan Filipe Loureiro Magalhães

A sucessão de ataques contra o Líbano, a Cisjordânia, o Irã, o Iêmen e de forma brutal e contínua, contra Gaza, evidenciam que os bombardeios aéreos conduzidos contra a Síria, mais uma vez sob a justificativa da “autodefesa preventiva”, não são eventos isolados, tampouco uma ação reativa à geopolítica regional. Trata-se de mais uma expressão de um padrão estratégico de política externa de um Estado que se sustenta sobre a necessidade estrutural da guerra permanente.

Desde sua fundação em 1948, Israel articula sua coesão interna em torno de uma lógica de confronto contínuo no plano internacional, ancorada em uma retórica da ameaça existencial que legitima qualquer forma de violência sob a justificativa da sobrevivência nacional, ou, em outras palavras, pelo direito de Israel de existir. Essa narrativa, evocando constantemente a memória do Holocausto e a longa história de perseguições sofridas pelo povo judeu, tornou-se um pilar ideológico que vincula a identidade nacional à manutenção de um estado permanente de guerra.

A lógica da excepcionalidade é acionada a todo instante. Cada inimigo é construído como a quintessência do mal (Fanon, 1968). Ações ofensivas são enquadradas como preventivas, e mortes de civis normalizadas como fatalidades inevitáveis. O colonizador transforma o colonizado em inimigo ontológico, desprovido de humanidade, para justificar sua dominação total de forma a apagar sua existência como possibilidade histórica. A guerra é mais do que um instrumento: é um modo de ser. A narrativa da segurança nacional legitima o estado de exceção constante e esconde um projeto político e ideológico de dominação regional.

O paradigma do Hard Power como eixo da política externa israelense serve, em última instância, para mascarar suas contradições internas. Enredado em sucessivas crises políticas, o governo de Benjamin Netanyahu mantém-se de pé graças à mobilização constante contra inimigos externos. A ameaça do Irã e seus aliados, composto por Hamas, Hezbollah e Houthis, incorpora uma dramaturgia estatal voltada à produção do medo como técnica de governo. O recente ataque à Síria encaixa-se perfeitamente nessa engrenagem como uma reafirmação do seu lugar como potência bélica regional, disposta a absolutamente tudo para preservar o monopólio da violência na região.

Entretanto, é na Faixa de Gaza que a política externa israelense revela sua face mais brutal. Ali, não se trata de confronto entre Estados ou forças armadas simétricas. Gaza é um laboratório que combina racismo, militarismo e colonialismo, produzindo o experimento deliberado e intencional mais brutal e sanguinário do século XXI: o genocídio palestino. O governo de Tel Aviv, nesse paradigma, exerce, para além do direito de matar, também de negar completamente a humanidade de seus alvos. A distinção entre combatentes e civis é abolida, o direito internacional é reconfigurado como obstáculo à “segurança nacional”, e a destruição em massa torna-se um método sistemático de governo.

Após a ofensiva do Hamas em outubro de 2023, o que se observa na Faixa de Gaza é uma campanha de extermínio. Mais de dezenas de milhares de mortos, a maioria civis; hospitais e escolas bombardeadas, campos de refugiados transformados em alvos, crianças soterradas sob escombros e a fome instrumentalizada como arma de guerra. Tudo isso é racionalizado sob o discurso da luta contra o “terrorismo”, enquanto a população palestina é destituída de qualquer valor político, ético ou jurídico. Uma verdadeira limpeza étnica deliberada.

A discrepância entre o tratamento dado ao Irã, com quem Israel foi compelido a aceitar um cessar-fogo após a Guerra dos 12 Dias e a política de extermínio em Gaza, revela a seletividade racial da violência israelense. O caso iraniano é emblemático: em diversas ocasiões, o Estado persa foi capaz de superar o sofisticado sistema de defesa Domo de Ferro, colocando em risco a população de Tel Aviv e de outros centros estratégicos, forçando-os a sair de sua rotina e abrigarem-se em bunkers, paralisando sua economia. Quando o inimigo tem capacidade real de resposta, há negociação, cálculo e contenção. Quando o inimigo é uma população empobrecida, sitiada e racializada, não há limites. O reconhecimento da soberania é condicionado ao poder de retaliar. A violência absoluta recai sobre aqueles que, por não representarem risco geopolítico relevante, são tomados como matáveis em sua totalidade.

Um Estado cuja trajetória histórica está profundamente entrelaçada com a guerra, que mobiliza a ameaça como elemento integrador da identidade nacional, parece não saber sobreviver politicamente à paz. Ao lançar bombas sobre o território sírio, Israel não apenas atacou alvos militares mas reafirmou sua condição de Estado que governa pela guerra permanente. Sob o olhar paralisado do Conselho de Segurança da ONU, Gaza vai sendo reduzida a ruínas, seus habitantes à categoria de resíduos históricos e a comunidade internacional segue cúmplice de um projeto de morte racializada que se naturalizou sob o paradigma de política externa da guerra permanente.

 

Wallace de Moraes é Professor Associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Juan Filipe Loureiro Magalhães é Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Transcrito do Le Monde Brasil-Diplomatique  (https://diplomatique.org.br/)

Sair da versão mobile