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    As intermitências da morte

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    Gaza, Nagasaki, periferias do Brasil. Quem dera a morte cansasse e, como a personagem do livro de José Saramago que dá título a esse texto, simplesmente abandonasse seu propósito. O dia amanhece e nenhum tiro atravessa um corpo palestino, nenhuma arma da polícia assassina um corpo preto, a memória nuclear japonesa se dissipa. No livro, a imortalidade é uma crise. Hospitais lotados, funerárias falidas, a igreja perdida sem paraíso. Então vale a pergunta: se ninguém morre, só resta transformar a vida?

    O genocídio na Palestina dilacera, acumula mais de 60 mil mortos em um território de escombros. O chão que os pés pisam cultiva a memória de um povo, traduz parte de sua identidade. Esse laço foi trucidado pelo sionismo. Em mais um ato de crueldade que a história não perdoará, o exército israelense fuzila aqueles que tentam se aproximar da comida. ‘Eu morreria por um pacote de farinha para meus filhos’, disse um homem em Gaza.

    O Washington Post fez um longo obituário infantil, do total de vidas ceifadas pela extrema-direita de Israel, quinze mil são crianças. Uma delas era Ayloul Quad, de sete anos. Era “a criança mais bonita que já vi na minha vida, por dentro e por fora”, disse sua tia Hiba Muqdad. “Nós caminhávamos pela rua e ela se recusava a comprar qualquer coisa, sabendo que outras crianças na rua não tinham o que comer.”, diz um trecho da reportagem. Mas no processo de desumanização do outro no Ocidente, Ayloul não é uma criança. Talvez você tenha um filho ou filha, sobrinha ou sobrinho. Não pense no sofrimento deles em Gaza.

    “Oitenta anos se passaram, mas nada mudou”, disse Terumi Tanaka, um sobrevivente da bomba atômica em Nagasaki. A explosão. Depois, o silêncio carbonizado. O horror rasgou tudo a 4.000 °C. Sobreviventes se arrastaram pelos destroços como zumbis de urânio. “Havia centenas de pessoas sofrendo em agonia, sem poder receber qualquer tipo de atendimento médico”, recordou Tanaka.

    Ainda me impressiono com a impessoalidade das bombas. “Fat Man” e “Little Boy” parecem ter nascido por geração espontânea. Quando lembrados, Harry Truman, então presidente dos EUA, e a equipe de Oppenheimer são meros passageiros das circunstâncias. Tudo leva a crer que não havia escolha, mesmo com a guerra em seu epílogo. Ficam entre esquecidos ou perdoados. A história é contada pelos vencedores e ainda rende Oscars. O filme sobre os sobreviventes de Hiroshima será estrelado por DiCaprio?

    No final de julho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou os dados do Anuário de Segurança. Os feminicídios bateram recorde. Os assassinatos de crianças e adolescentes aumentaram em 2024 e 19% deles envolveram policiais. Comemora-se a queda nas mortes violentas, que recuaram 5,4%. São 44.125 vidas perdidas em uma guerra civil que o país teima ignorar, porque o maior número dos mortos são negros e negros são como os palestinos, que são como os zumbis da bomba.

    São jovens a maioria deles, a maioria deles negros, alvejados ao deixar o trabalho, ao sair do baile, ao fazer compras em um supermercado, ao andar de carro ou simplesmente caminhar em seu bairro. Mas também em confrontos com o tráfico. Esses jovens não podem viver? Há que lembrar o alerta, que já virou clichê insistente, de Darcy Ribeiro. Era preciso construir mais escolas para que não se construíssem mais presídios no futuro. Virou post amarelado.

    Há muito em comum nestes três desastres. Todos seriam evitáveis. A Segunda Guerra se aproximava do fim;  Israel poderia sufocar o Hamas com inteligência – sem falar no cessar-fogo que deveria ser decretado há meses; a polícia teria que tratar os pobres como cidadãos e não como ameaças. O Brasil deveria carregar menos armas.

    60 mil, 44 mil, 200 mil. Números e mais números que ocultam crianças, pais, mães, tias, tios, sobrinhos. Minha ideia inicial era fazer associações com o livro de Saramago, mas o texto do português, com suas frases sem fim e diálogos contínuos, tem uma saborosa ironia, fazem da filosofia a amiga do riso. Foi impossível acercá-lo. Na obra, em certo momento, a morte volta e seus escolhidos começam a receber cartas, avisando a chegada do inevitável. Em Gaza, essas cartas cortam o ar a todo instante; em Nagasaki, caíram do céu; no Brasil, dobram qualquer esquina periférica. A morte não cessa, a vida sangra e grita sobrevivências.