73 milhões de brasileiros — um a cada três — sofrem de insônia, de acordo com dados da Associação Brasileira do Sono (2022).
Quando crianças, encontramos nos braços da figura materna e em seu acalanto o ambiente suficientemente bom que nos apazigua a angústia e nos permite adormecer (Pereira, 2021). A mãe, o cuidador ou o “anjo da guarda” oferecem a benevolente ilusão necessária nesse período: a de que podemos nos entregar indefesos ao sono, com a garantia de que estamos protegidos e de que nada de mal nos acontecerá enquanto dormimos.
Com o tempo, incorporamos, de certa forma, essa função. Aprendemos e inventamos maneiras próprias de nos embalar para conquistar o sono. Mas o que acontece quando esse processo começa a falhar, quando surgem as perturbações do sono?
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Na nossa cultura, existem algumas estratégias privilegiadas para lidar com a insônia: técnicas de relaxamento, higiene do sono e terapia medicamentosa. Na tentativa de “dormir melhor”, recorremos a práticas como yoga, chás, o desligamento de telas ou até mesmo a “chupeta para adultos”, que virou febre recentemente na China.
Essas abordagens tratam as perturbações do sono como advindas basicamente da esfera hormonal, cerebral ou sensorial. Isso alimenta uma avalanche de tratamentos da moda que, apesar de tentarem recuperar algo importante na criação de um ambiente suficientemente bom, não parecem reduzir os índices de insônia, que continuam a subir — assim como a dependência lícita de medicamentos para dormir. Algo parece nos escapar nessa forma de abordar as coisas, e a psicanálise pode nos indicar o quê.
Durante parte da minha análise pessoal, vivi uma insônia intermitente e desesperadora. Curiosamente, sempre me surpreendia que, em viagens, assim que o avião decolava, eu adormecia quase automaticamente. Brinquei, certa vez, com meu namorado, dizendo que talvez o avião fosse um dos poucos lugares em que eu ainda acreditava no piloto.
Essa brincadeira me parece carregar uma dimensão da verdade implicada. Diferente das crianças e adolescentes, que muitas vezes se refugiam numa hipersonia — excesso de horas de sono, por vezes necessário para elaborar a intensidade da transformação implicada nesses períodos da vida —, em determinado momento da vida adulta nos deparamos com essa verdade desconfortável: nos voos mais decisivos da nossa vida, não contamos com um piloto além de nós mesmos. É nesse momento que muitos de nós perdemos o sono.
Para podermos avançar no tratamento das perturbações do sono, é preciso colocarmos algumas questões que abrem as vias de sua possível resolução: o que é preciso modificar no cerne da minha vida para reconquistar o adormecimento? Que ação concreta sou chamado a sustentar para, enfim, dormir em paz?
Responder a essas perguntas não é tarefa fácil. Uma primeira pista, porém, podemos encontrar nos nossos sonhos — e, para quem sofre com distúrbios do sono, muitas vezes nos pesadelos. Um exemplo pode nos servir de ilustração.
Durante a insônia que me acometia, quando finalmente conseguia dormir, eu tinha um pesadelo recorrente, uma ou duas vezes por semana, com a mesma temática, embora o enredo mudasse:
“Estou na casa dos meus pais e começo a falar daquilo que mais me angustia. Alguns parentes me ouvem com ironia, não dão atenção, olham com preguiça. Decido ir embora, mas, ao chegar perto do portão, minhas pernas cedem, perco as forças, deito no chão e começo a chorar, esperando que alguém venha me cuidar. Nessa espera, eu desperto.”
Alguns elementos desse sonho são recorrentes em sonhos traumáticos (BUCHER; HENDERSON, 2023): ali onde se esperava o cuidado, no seio do ambiente mais familiar, nos deparamos com a descoberta de que esse outro pode faltar. Mas é importante destacar ainda que esse encontro com a ausência convoca o sujeito a um ato decidido — no sonho, a escolha de se retirar.
Se despertamos de um pesadelo em seu ponto de maior angústia, podemos observar que aquilo que interrompe o sono aqui não é o sonhador se deparar com aquela ausência. Mas a sua dificuldade na execução de um ato, sua espera indefinida por amparo.
Em muitos casos, a insônia surge em períodos prévios à realização deste ato capaz de deslocar o sujeito dessa posição de espera. E se torna desnecessária após a sua conclusão. Em conjunto com o trabalho psicanalítico, o auxílio psiquiátrico pode se tornar necessário nesse período como apoio nesse processo.
Processo nada simples: inventar, nesse justo lugar de desamparo, um laço inédito com o outro com quem possamos enfim contar — através das amizades, da arte, do trabalho ou de um novo enlace amoroso e sexual.
Para isso, devemos ser capazes de abrir mão daquela ilusão de segurança materna, de atravessar a repetição na qual esbarramos sempre na mesma falha deixada pela “casa dos pais”. Tarefa de gente grande, mas a nossa cultura insiste nas chupetas…
- Guilherme Freitas Henderson
Psicanalista. Doutor e Mestre em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Psicologia pela mesma universidade, com período sanduíche na Universidad de la República – Udelar (Uruguay). Membro da Associação Lacaniana de Brasília. Reside em Brasília (DF).
Referências
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO SONO. Sono. Edição 29, jan./fev./mar. 2022. São Paulo: Associação Brasileira do Sono, 2022.
BUCHER, J. A. D. F.; HENDERSON, G. F. Da insônia ao verdadeiro despertar. In: CATÃO, A. M. L.; SAMARCOS, A. L. H.; BEATO, C. R. P. S. (org.). Psicanálise em tempos pandêmicos: do mal-estar da cultura ao além do setting analítico. Curitiba: CRV, 2022.
PEREIRA, M. E. A erótica do sono. São Paulo: Aller Editora, 2021.
A psicopatologia da vida cotidiana: psicanálise, sociedade e cultura