A denúncia do Ministério Público de Goiás (MPGO) contra um grupo que fraudava impostos devidos por transferência ou doação de bens aponta que um integrante do esquema se passava por funcionário público para atrair a confiança das vítimas.
Segundo o órgão, um dos denunciados, que fez a interlocução com um dos alvos do esquema, chegou a se passar por assessor da procuradoria da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), conseguindo inclusive uma credencial em seu nome.
Segundo o MP, tal integrante do esquema “atribuiu-se falsa identidade, para obter vantagem, em proveito próprios e alheios, bem como para causar dano a outrem, ao se identificar como Assessor da Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás – ALEGO”.
O Ministério Público cita que, além de ter se identificado como funcionário da Assembleia, ele também teria sido referido no esquema como um “rapaz da Sefaz” para a suposta vítima da qual trata a denúncia.
A Sefaz seria uma referência à Secretaria de Fazenda, órgão público estadual responsável, dentre outras coisas, pela arrecadação de impostos.
“Sem possuir qualquer vínculo funcional com esses órgãos públicos (SEFAZ e ALEGO), [o denunciado], com o auxílio dos demais denunciados, atribuiu-se essa falsa identidade para obter vantagem ilícita e causar danos às vítimas e ao estado”, afirma a denúncia.
Embora este denunciado não tivesse vínculos com a administração pública, o MP afirma que outros integrantes do esquema exerciam cargos de servidores.
Exemplo disso é uma tabeliã que exercia o cargo interino de tabeliã no Cartório de Acreúna (GO) e um procurador da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego). Para o MP, ambos violaram seus deverem funcionais e foram denunciados.
A peça acusatória cita, por exemplo, que o procurador teria permitido o acesso de outros integrantes do grupo criminoso na Assembleia para “reuniões destinadas à prática de crimes contra a administração pública, franqueando acesso de terceiros não autorizados às instalações da Assembleia Legislativa”.
Segundo o MP, esses espaços foram utilizados para “conferir aparência de oficialidade ao esquema criminoso e emprestar o prestígio de seu cargo público” com o objetivo de induzir as vítimas a contratar o esquema fraudulento.
Prédio do Ministério Público de Goiás (MPGO) em Goiânia
Como funcionava o esquema
O grupo seria responsável por promover um esquema de fraude no Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD) -imposto estadual cobrado em processos de transmissão de bens por herança ou doações.
Os golpes, segundo o MP, obedeciam uma divisão de tarefas organizada para realizar os golpes, cuja atividade criminosa era estruturada em “núcleos interdependentes e autônomos, com clara divisão de tarefas”.
O modo de agir consistia, inicialmente, na falsificação de Demonstrativos de Cálculo do ITCD, um documento que apresenta detalhes usados para calcular o valor do imposto devido pela transmissão do bem ou da doação.
Na sequência, com alteração fraudulenta das alíquotas devidas, emitiam guias de recolhimento com um código genérico, ao invés de utilizar um código específico do ITCD. Dessa forma, abriam espaço para o recolhimento de valores substancialmente menores que os efetivamente devidos ao erário estadual.
Cobrança de propina
Como mostrou a coluna, o caso concreto do qual trata a denúncia do Ministério Público é o de três irmãos que buscavam fazer o procedimento de doação de uma terra pertencente aos seus pais. Um deles, ao se conduzir ao Cartório onde a tabeliã trabalhava, para obter informações sobre o trâmite, foi indicado a falar com um “rapaz da Sefaz”.
Tal rapaz, segundo a tabeliã, poderia conseguir um valor mais baixo para o imposto.
O homem, então, teve um encontro no próprio Cartório com um dos integrantes – o mesmo que teria se passado por funcionário público. Não convencido do esquema, foi agendada uma reunião na própria Assembleia Legislativa, quando, segundo o MP, “os denunciados articularam uma estratégia mais elaborada para conferir aparência de legitimidade ao esquema fraudulento”.
Após uma explicação sobre como funcionaria tal esquema para diminuir o montante devido pelo imposto, a vítima se negou a seguir adiante, questionando a licitude do que havia sido proposto.
Diante da negativa, o grupo passou a insistir com a possível vítima para que aceitasse os termos propostos, alegando que o esquema seria lícito.
Tendo em vista a decisão contrária do homem, passaram a ameaçá-lo com a possibilidade de reavaliar o valor das propriedades rurais, aumentando o ITCD a ser recolhido em cerca de R$ 3 milhões caso não fosse pago R$ 1 milhão em propina.
Segundo consta na denúncia, só então, “diante da exigência ilegal e do temor de que o processo de doação fosse obstaculizado”, os irmão cederam aos requisitos do grupo criminoso. O valor de R$ 1 milhão, após negociação, foi para R$ 800 mil.
A vítima foi posteriormente ouvida pelas autoridades e alegou que teria feito o pagamento por “medo”. “Mas nós pagamos por receio, por medo de… dele atrapalhar aquele procedimento que estava sendo feito dentro da Sefaz. Que era o processo do ITCD… o processo de doação”, disse.
Relatou, ainda, que a percepção entre os irmãos era de que o integrante do grupo criminoso com quem tinha interlocução tinha grande influência dentro da Sefaz.
“Pelo que a gente tinha ouvido dentro do cartório e pelo que a gente sabia, parece que ele…, a influência dele na Sefaz era muito grande. A impressão que a gente tinha é que ele comia dentro da cozinha da Sefaz. Ele estava ali o tempo inteiro. Então, a impressão que a gente tinha é que ele tinha facilidade para fazer o que queria. Então, assustou demais nós. Assustou muito”, afirmou em depoimento.
Depois do recebimento da propina, o valor foi dividido entre os integrante do grupo.
Em maio deste ano, quando a Polícia Civil prendeu cinco pessoas suspeitas de integrar o esquema, a defesa do procurador se pronunciou dizendo que seu cliente negava os fatos a ele atribuídos e que não conhecia as pessoas presas na ocasião.
Nos autos do processo, a defesa do procurador pleiteou a suspensão da ação com base em alegações de que algumas das provas utilizadas na investigação não seriam válidas. Para o advogado, os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) foram obtidos com o Coaf sem autorização judicial e, portanto, seriam “ilícitos”.
À época, a Assembleia também se manifestou e disse que não tinha conhecimento sobre a operação da Polícia que investigada servidores da Casa. Ressaltou, ainda, que não se responsabiliza por qualquer ilícito cometido por servidores que não tenha relação com a administração legislativa.
O advogado Romero Ferraz Filho, responsável pela defesa do procurador, disse em nota a “denúncia oferecida, apenas repete os argumentos que foram utilizados para o deferimento das medidas cautelares por ocasião da deflagração da segunda fase da Operação Prince John”.
“Não obstante a isso, nos últimos dias, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás determinou a suspensão da denúncia oferecida, por indícios de ter sido oferecida com base em elementos ilícitos, colhidos à revelia do Estado Democrático de Direito”, diz a nota.
Ainda segundo o advogado, os valores recebidos pelo procurador “são inerentes a recebimento de honorários advocatícios por serviços devidamente prestados.”