MAIS

    O ocaso do multilateralismo (por Lucio Reiner)

    Por

    O multilateralismo morreu. As instituições arduamente erguidas após a II Guerra Mundial respiram por aparelhos. Para a maioria dos 193 países-membros da ONU, trata-se de uma tragédia: no novo mundo bipolar, imperam relações baseadas na força bruta. Só os mais fortes prevalecem e impõem sua vontade, em um renascimento do colonialismo e da famigerada “política das canhoneiras” de pouco mais de um século atrás. Ai de quem não tiver forças armadas robustas para dissuadir intervenções!

    Um rápido panorama confirma essa constatação.

    ONU e satélites – Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança bloqueiam qualquer possibilidade de intervenção efetiva. Falar em ampliar o número de assentos permanentes é repetir um mantra inócuo: os bloqueios continuarão — e provavelmente aumentarão. A Assembleia Geral virou palco para discursos eloquentes, mas ineficazes, com resoluções que valem menos que o papel onde são impressas. Sua bela sede em Nova Iorque tornou-se ponto de intenso turismo diplomático, enquanto o cargo de Secretário-Geral, antes respeitado, hoje soa como um sussurro afônico.

    FAO – Criada em 1945 para erradicar a fome, em 80 anos produziu resultados pífios. Sua sede em Roma é motivo de regozijo para funcionários, delegações e ONGs, mas pouco para os famintos. Se não resolveu em oito décadas, é ilusório imaginar que o fará nas próximas.

    UNESCO – Também fundada em 1945, com o objetivo de promover educação, ciência e cultura, ostenta invejável sede em Paris. No entanto, pouco fez para reverter a concentração do conhecimento e da educação de qualidade nos países desenvolvidos. Cometeu ainda o “deslize” de criticar os EUA, que cortaram o financiamento e se retiraram da organização.

    UNICEF – Desde 1946, atua em defesa dos direitos da criança, fornecendo vacinas, água, saneamento e educação básica. Louvável, mas cronicamente subfinanciada, tornou-se mais conhecida por seus cartões postais caros que por transformar realidades. Como toda agência da ONU, gasta boa parte do orçamento em burocracia.

    OMC – Nascida como GATT, em 1947, para evitar guerras comerciais como as que antecederam a crise de 1929, transformou-se em OMC em 1995, em Genebra. Ia relativamente bem até a chegada de Donald Trump, que pulverizou décadas de negociações multilaterais. Hoje, reina a negociação bilateral e a chantagem comercial — resistida apenas pela China.

    OEA – Um endereço nobre em Washington, dois prédios imponentes, e quase nada de relevante nas últimas décadas. Vive de discursos e resoluções sem efeito prático, justificando cada vez menos seu custo.

    E poderíamos citar muitas outras organizações esvaziadas pela nova ordem hobbesiana que impôs a lei da selva nas relações internacionais.

    BRICS – Criado a partir de um acrônimo inventado no Goldman Sachs, o grupo ganhou forma política graças à China. Fundou um banco em Xangai, com capital majoritariamente chinês, mas sem realizações expressivas, salvo o inútil socorro financeiro à Argentina kirchnerista. Ampliado em 2024 para incluir países tão díspares quanto Irã, Arábia Saudita, Egito e Argentina, o BRICS sonha com protagonismo, mas na prática seus membros continuam negociando individualmente com Washington.

    Guerras – Conflitos tanto internacionais como internos (Ucrânia, Rússia, RDC, Ruanda, Etiópia, Eritreia, Armênia, Azerbaijão, Sudão, Nigéria, Líbia, Israel, Palestina, Líbano) se sucedem, sem solução vinda de fóruns multilaterais. No máximo, surge um mediador eventual. Hoje, guerras se resolvem bilateralmente — pela vitória de um lado ou por acordo direto. ONU, OEA, União Africana? Figurantes.

    A consequência é o abandono das políticas de ajuda internacional e o corte de programas sociais, especialmente nos países desenvolvidos. Em contrapartida, cresce uma nova corrida armamentista. A história é clara: maciços investimentos militares costumam terminar em grandes conflitos — como a I e a II Guerras Mundiais.

    O velho adágio latino ecoa: Si vis pacem, para bellum. O Brasil investe apenas 1% do PIB em defesa, sendo 85% destinado a soldos e burocracia. Hoje o padrão OTAN é 3%, com no máximo 25% para manutenção e salários. Sem capacidade militar, nossa diplomacia — por mais respeitada que seja — perde poder real.

    Bacharel em Relações Internacionais (ScPo Paris). Mestre em Relações Internacionais (UnB). Ex-Chefe da Assessoria Internacional e Protocolo da Presidência da Câmara dos Deputados