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50% dos antibióticos hospitalares são usados de forma errada

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50% dos antibióticos hospitalares são usados de forma errada

Você saberia dizer qual é a maior ameaça à saúde global nas próximas décadas? Para muitos, a resposta imediata ainda seria o câncer ou as doenças cardiovasculares.

No entanto, organizações de saúde internacionais têm acendido outro alerta: a resistência antimicrobiana. O fenômeno, descrito como uma “pandemia silenciosa”, já provoca milhões de mortes por ano e, se nada mudar, pode se tornar a principal causa de óbitos até 2050.

A resistência antimicrobiana acontece quando bactérias, vírus ou fungos deixam de responder aos medicamentos usados para combatê-los — em especial os antibióticos.

“É constrangedor: você diagnostica o paciente, identifica a bactéria, mas quando olha o antibiograma, quase tudo já é resistente. Chega um ponto em que não há mais drogas disponíveis”, explicou o infectologista David Uip na primeira edição do Educa Talks, com o tema “Resistência Antimicrobiana: uma nova pandemia silenciosa”. O encontro foi promovido pelo Metrópoles e o Centro Universitário Euroamericano (Unieuro).

David Uip explica os riscos da resistência antimicrobiana, considerada uma “pandemia silenciosa”

O alerta de Uip ecoa o que a ciência já acompanha há décadas: o uso excessivo e incorreto de antibióticos somado à falta de novos investimentos em pesquisa podem criar um cenário em que procedimentos simples, como uma cesariana ou uma cirurgia estética, voltem a ser de alto risco, tal como ocorria antes da descoberta da penicilina em 1928.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019 cerca de 7,7 milhões de pessoas morreram em decorrência de infecções bacterianas.

Desses casos, 4,95 milhões tiveram relação direta com a resistência a antibióticos e, pelo menos, 1,27 milhão foram causados especificamente por microrganismos resistentes.

Projeções indicam que, dentro de 25 anos, uma pessoa poderá morrer a cada três segundos em todo o mundo por causa das chamadas superbactérias — superando os índices de mortalidade por câncer e doenças cardíacas.

Uma pandemia que não se anuncia, mas já começou

Diferente da Covid-19, que em poucos meses paralisou o planeta, a resistência antimicrobiana avança de forma silenciosa. É um inimigo invisível que não estampa manchetes diárias, mas já está dentro dos hospitais, clínicas e até na rotina doméstica.

O médico David Uip fez uma comparação impactante: “As pessoas dizem que é um problema atual. Não é. A resistência vem crescendo há décadas. Eu acompanho esse cenário há pelo menos 20 anos e é cada vez mais frequente — no Brasil e no mundo.”

Hoje, segundo Uip, seriam necessários apenas US$ 9 bilhões anuais em investimentos direcionados a países em desenvolvimento para reduzir drasticamente esse impacto. O valor é irrisório se comparado aos trilhões gastos com a pandemia da Covid-19.

Médico infectologista, professor titular da Faculdade de Medicina do ABC, professor Livre Docente da Universidade de São Paulo e professor visitante do Unieuro, o dr. David Uip foi diretor técnico do Serviço de Saúde do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Ele lembra que, diante do esgotamento dos medicamentos modernos, médicos têm sido obrigados a recorrer a antibióticos antigos, como a polimixina, introduzida ainda na década de 1940 e antes pouco usada devido à toxicidade. Hoje, ela volta a ser uma das poucas opções em alguns casos.

O problema, explica o especialista, é que não há perspectiva de novas classes de antibióticos.

No mundo inteiro, existem atualmente apenas 43 medicações desse tipo em pesquisa — todos derivados de gerações anteriores. Nenhum deles, segundo Uip, têm competência comprovada para combater as bactérias multirresistentes que já circulam.

A equação é cruel: de um lado, bactérias cada vez mais adaptadas; de outro, um ritmo lento de inovação farmacêutica. O motivo? Falta de investimento.

“O gargalo está na política pública e privada. A indústria farmacêutica brasileira é muito competente, mas precisa de incentivo. Se houver parcerias público-privadas, podemos avançar, não só em antibióticos, mas também em vacinas e imunizantes. É uma oportunidade para o Brasil, se houver visão estratégica.”

David Uip, médico infectologista

Durante a Covid-19, o mundo assistiu em tempo real ao impacto de um vírus desconhecido: colapso hospitalar, corridas por vacinas e restrições globais. Com a resistência antimicrobiana, o cenário é distinto — mas não menos grave.

Trata-se de um tsunami em câmera lenta: cada infecção mal tratada, cada automedicação e cada uso excessivo de antibióticos na agropecuária amplia o risco coletivo.

Quando até o básico fica em risco

A força da resistência antimicrobiana não se revela apenas em UTIs lotadas ou em diagnósticos complexos. Ela está presente em situações comuns do dia a dia: uma cesariana, uma cirurgia ortopédica, um tratamento de quimioterapia ou um simples procedimento estético.

“Você vai para um hospital, faz uma cirurgia aparentemente simples e pode sair com uma bactéria multirresistente. Muitas vezes, esse é o fator oculto por trás de complicações graves ou até da morte do paciente”, alerta o especialista.

Segundo ele, não é exagero dizer que essa realidade ameaça comprometer avanços da medicina moderna. Transplantes de órgãos, por exemplo, estão no centro dessa crise.

“Eu trabalho a vida inteira com imunodeprimidos, especialmente transplantados. Quando um paciente que recebe um novo órgão contrai uma infecção por bactéria multirresistente, todo o investimento público e a expectativa de uma família, pode ser perdida. É devastador.”

Isso não vale apenas para casos extremos. Procedimentos corriqueiros também passam a ser de alto risco quando o arsenal de antibióticos falha.

O peso da desigualdade

Outro dado alarmante apresentado por Uip é que 70% dos países do mundo não possuem estrutura mínima para controlar antimicrobianos. Isso significa que a maioria das nações em desenvolvimento não tem protocolos adequados de prescrição, monitoramento de infecções hospitalares ou fiscalização do uso agrícola de antibióticos.

A divisão é clara: de um lado, países ricos, com sistemas capazes de mapear surtos e reduzir infecções. Do outro, regiões inteiras onde saneamento básico precário, superlotação e automedicação aceleram a disseminação da resistência.

David Uip reforça que a resistência antimicrobiana é um desafio de saúde pública global

“Você vai para a periferia do Brasil e encontra condições semelhantes às de países da África. Casas com dez pessoas em um cômodo, sem esgoto, sem água tratada. É nesse ambiente que a resistência encontra terreno fértil. É preciso coragem política para investir naquilo que não se vê: esgoto, água limpa e saneamento. Essa é a base”, pontuou Uip.

A cultura da automedicação

O problema não nasce apenas nos hospitais. Ele também está nas farmácias e nas casas. O hábito de tomar antibióticos sem prescrição ou de reaproveitar sobras de caixas é uma das engrenagens da resistência.

“Cinquenta por cento dos antibióticos prescritos em hospitais são inadequados — seja pela dose, pela indicação ou pelo tempo errado de uso. Se isso acontece dentro de hospitais, imagine o que ocorre quando o paciente se automedica em casa”, ressalta Uip.

Esse quadro cria uma cultura perigosa: muitos pacientes chegam ao consultório exigindo antibióticos como solução para quadros virais, nos quais o medicamento não tem efeito. A recusa médica, por vezes, gera insegurança ou até insatisfação.

Do passado ao futuro: o fio de esperança

O risco da resistência não é uma novidade. Alexander Fleming, descobridor da penicilina, já alertava em 1945 para o perigo de uso indiscriminado de antibióticos. Essa previsão, feita ao receber o Prêmio Nobel, ecoa até hoje.

Quase 80 anos depois, a ciência continua buscando alternativas. O avanço recente da inteligência artificial e da biologia molecular abre perspectivas. Pesquisadores já sequenciaram mais de 200 milhões de proteínas, o que pode acelerar a criação de novos medicamentos.

Mas, Uip faz um alerta: “Não adianta acreditar que a tecnologia sozinha vai resolver. As bactérias também evoluem, também se atualizam. É preciso combinar ciência de ponta com políticas públicas, com saneamento básico, com educação em saúde. Do contrário, não haverá vitória.”

O infectologista David Uip foi entrevistado pela jornalista Vanessa Oliveira

A responsabilidade é de todos

No fim da entrevista, o recado foi claro: a resistência antimicrobiana é um desafio coletivo.

“Vai desde o indivíduo que guarda a caixa de antibiótico em casa, até o médico que precisa prescrever com responsabilidade, passando pela indústria e pelo poder público. Se não houver engajamento de todos, essa pandemia silenciosa continuará crescendo”, resumiu David Uip.

O alerta tem peso de quem viu de perto epidemias que marcaram gerações — da meningite à AIDS, da dengue à Covid-19. Para ele, a resistência antimicrobiana carrega a mesma lógica: é melhor agir agora do que contar mortos depois.

“Pandemia, você sabe onde começa. Mas não sabe onde termina.”

David Uip, médico infectologista

O silêncio que pode custar milhões de vidas

A resistência antimicrobiana não é um inimigo distante.

Ela está no hospital público onde falta antibiótico adequado, na clínica clandestina que aplica procedimentos estéticos sem higiene, no campo onde antibióticos são usados de forma indiscriminada em animais, e também na farmácia da esquina, quando alguém compra uma caixa sem receita e guarda o que sobra para “usar depois”.

Uip destaca que a falta de novos antibióticos pode comprometer procedimentos médicos comuns

Se nada for feito, em 2050 o mundo pode assistir à morte de uma pessoa a cada três segundos por bactérias multirresistentes. Esse número não é apenas estatística: são famílias que perderão mães, filhos, irmãos, amigos — vítimas de algo que poderia ser prevenido.

Mas há também espaço para otimismo. A ciência nunca teve tantas ferramentas para enfrentar um problema como agora. Inteligência artificial, biologia molecular e vigilância epidemiológica podem abrir caminhos antes impensáveis. Só que, como lembrou Uip, nada disso funcionará se faltar coragem para investir no básico e responsabilidade no uso de cada medicamento.

O futuro da medicina  e da vida cotidiana como a conhecemos depende de pequenas escolhas feitas hoje, como recusar uma automedicação, exigir políticas públicas eficientes e apoiar pesquisas.

No fim, o maior risco da resistência antimicrobiana não é apenas a morte silenciosa de milhões. É a indiferença que permite que ela continue crescendo sem resistência.

Fique ligado no portal e nas redes do Metrópoles, pois o próximo Educa Talks será em outubro.

Para reforçar o compromisso da instituição em trazer nomes de referência nacional para enriquecer a formação acadêmica, o Centro Universitário Euroamericano (Unieuro) fechou essa parceria com o Metrópoles para viabilizar a realização da primeira edição do Educa Talks.

O médico infectologista David Uip, que conduziu a palestra, é professor convidado da instituição e mantém contrato ativo com a universidade justamente para engrandecer o curso de Medicina.

A presença dela no evento reforça a proposta da Unieuro em oferecer aos estudantes contato direto com profissionais que seguem atuando na linha de frente dos maiores desafios globais.

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