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A sentença que encerra um ciclo (por Hubert Alquéres)

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A sentença que encerra um ciclo (por Hubert Alquéres)

Pela primeira vez, a Justiça brasileira levou ao banco dos réus e condenou generais de quatro estrelas e um ex-presidente da República por tentativa de golpe. Um feito inédito, com profundo significado histórico. Mais do que isso: o Brasil está virando uma página de sua história, que atribuía às Forças Armadas o papel de tutora e guardiã moral da Nação.

Revisitar alguns episódios mostra o quanto esta mentalidade fez mal ao país. Segundo Carlos Fico, historiador e autor do livro Utopia Autoritária Brasileira, antes mesmo do advento da República setores das Forças Armadas se portavam como um grupo moralmente superior aos civis, vistos como incompetentes e corruptos. Convencidos de que o povo era incapaz de escolher bons governantes, logo após o fim da Guerra do Paraguai os militares puxaram para si o papel de defesa da ordem e da modernização do país pela via de um Estado forte e autoritário.

No nascedouro da República já estava latente a ideia tão cara a Benjamin Constant de uma “ditadura progressista”. O Exército era visto pelas lideranças positivistas como o núcleo acima das disputas políticas, o único capaz de assegurar a integração nacional. A República ainda não tinha completado dois anos quando Deodoro da Fonseca, primeiro presidente do país, e Floriano Peixoto tentaram, sem sucesso, fechar o Congresso e inaugurar a “ditadura progressista”.

O papel das Forças Armadas como tutoras da Pátria ganhou respaldo constitucional já na Constituição de 1891, cujo artigo 14 — redigido por Rui Barbosa, defensor do Estado de Direito — conferia-lhes a missão de defender a pátria no exterior e manter as leis internas, subordinando-as ao presidente da República “dentro dos limites da lei”. A redação ambígua abria margem para interpretações intervencionistas, ao permitir que os militares julgassem se as ordens do Executivo estariam ou não dentro desses limites. O dispositivo inaugurou uma tradição jurídica de tolerância à tutela militar que se perpetuou em constituições posteriores e encontra eco no atual artigo 142, cuja formulação imprecisa segue alimentando interpretações autoritárias sobre o papel das Forças Armadas.

No início do século XX, essa visão ganhou reforço ideológico. Em 1912, o lançamento da Revista da Defesa Nacional e os escritos de Oliveira Viana, principal veículo de debate militar e doutrinário, difundiam a ideia de que a instabilidade política e social justificava a intervenção das Forças Armadas como tutoras da Pátria.

Viana argumentava que o Estado forte e hierárquico era condição para o progresso nacional, criando um arcabouço que legitimava ações de fato autoritárias sob aparência de legalidade. Seu pensamento antiliberal inspirou o Estado Novo, o Golpe de 1964, e fez a cabeça de lideranças militares de diversas gerações. Para ele, a democracia liberal dos países desenvolvidos não era viável no Brasil.

Assim, o ideário positivista que inspirou a Primeira República criou um terreno fértil para golpes e sublevações. Um quadro histórico também marcado por uma tradição de impunidade. Rui Barbosa defendeu a anistia aos militares sublevados em 1905, após conflitos como a Revolta da Vacina, em nome da pacificação. Esse também foi o argumento para a anistia de militares sublevados no governo Juscelino. E agora, em nome da “pacificação”, pleiteia-se anistia para os golpistas do 8 de Janeiro, inclusive para seu núcleo central e para Bolsonaro.

Se algo a história demonstrou é que anistias, em vez de levar à pacificação do país, serviram de estímulo para novas intervenções de militares na vida política nacional. A impunidade acabou reforçando a percepção de que militares poderiam desafiar normas constitucionais sem consequências concretas, consolidando um precedente de tolerância à transgressão institucional. A força podia se sobrepor à lei — lógica que permaneceria como uma sombra sobre a democracia brasileira ao longo do século.

O julgamento do núcleo crucial da tentativa de golpe representa, nesse sentido, uma ruptura histórica. Ao condenar militares de alta patente e um ex-presidente, capitão da reserva, o Brasil confronta a lógica que, por mais de cem anos, embasou intervenções e tentativas de tomada do poder. Mais do que a responsabilização de indivíduos, o julgamento simboliza o esgotamento de um projeto político que via nas Forças Armadas o poder supremo sobre a vida política e social da Nação. Com ele a Justiça brasileira condenou o núcleo de um golpe que se alimentava de ambiguidades constitucionais, de doutrina militar e de precedentes de impunidade.

A utopia autoritária, que atribuiu às Forças Armadas o papel de tutoras morais e políticas da Pátria, esgotou-se. E quando a democracia demonstra resiliência e responde à altura aos atentados golpistas, como acontece agora, o Brasil marca posição, pelo caminho da lei, em relação à onda autoritária e antiliberal que varre o mundo.

Em síntese, a trajetória que vai do artigo 14 da Constituição de 1891, passando pela Revista da Defesa Nacional e os escritos de Oliveira Viana, até a anistia defendida por Rui Barbosa e o artigo 142 da Constituição atual, encontra seu ponto de virada no julgamento do núcleo do golpe.

Ao condenar os articuladores do golpe, o Supremo Tribunal Federal reafirma não apenas a autoridade da Justiça, mas a centralidade da Constituição de 1988 como pacto civilizatório da democracia brasileira. A “Constituição Cidadã”, concebida para romper com os traumas da ditadura, é clara em estabelecer a subordinação das Forças Armadas ao poder civil.

O julgamento desmonta de vez as interpretações distorcidas do artigo 142, que por anos alimentaram a ilusão de um poder moderador militar — uma ficção jurídica que serviu de verniz legal a pretensões golpistas. Ao fazê-lo, o Supremo selou, enfim, a ruptura com um século de permissividade e reafirmou que, no Brasil democrático, a força não está acima da Constituição.

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.

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