Cidades ao redor do mundo que já sofreram os impactos dos aplicativos de entrega no trânsito têm buscado alternativas para evitar a imprudência por parte de motociclistas, que são estimulados a cometer abusos pelos algoritmos das grandes empresas. Para evitar a explosão no número de mortos, lugares como Nova York, nos Estados Unidos, e Adis Abeba, na Etiópia, têm adotado desde um valor mínimo a ser pago aos entregadores até sirenes e alarmes que apitam quando a moto excede a velocidade.
Em entrevista ao Metrópoles, o coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global no estado de São Paulo, Diogo Lemos, afirma que aplicativos de entrega interferem no trânsito por provocar um aumento no número de motos em circulação, com comportamento de risco por causa das pressões para se levar os pedidos em grande quantidade e de forma rápida.
Lemos afirma que, por ser a maior cidade do Brasil, São Paulo talvez seja a que mais se consiga colocar frente à frente com os aplicativos para estabelecer medidas como as que foram tomadas por Nova York e Adis Abeba. “É uma cidade que pode abrir conversa com essas empresas, demandar coisas, como compartilhamento de dados, a quantidade de vítimas que essas empresas têm entre os prestadores de serviço”, diz.
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Em Nova York, por exemplo, entregadores recebem no mínimo US$ 21,44 (R$ 114,16) por hora trabalhada, com reajuste anual, pela inflação. Antes da implementação do salário-mínimo, eles recebiam, em média, US$ 5,39 (R$ 28,70). A cidade norte-americana começou a discutir esse tipo de pagamento aos trabalhadores em 2021, com resistência por parte dos aplicativos.
Dois anos depois, a medida começou a ser implementada e, segundo a prefeitura local, até abril, já tinha rendido cerca de US$ 700 milhões adicionais (R$ 3,7 bilhões) aos 60 mil entregadores que trabalham em Nova York.
O maior aplicativo em São Paulo, o Ifood, paga tarifa básica de R$ 7,50 por entrega com motos (R$ 7 com bicicletas). Em agosto, o Metrópoles mostrou que trabalhadores recebem bônus em períodos de maior demanda — as “promoções” –, estimulando-os a correr mais, com mais risco, para ficarem disponíveis rapidamente para recolher novos pedidos, em método que transforma o trabalho em jogo (gamificação).
Veja a entrevista com o coordenador executivo da Iniciativa Bloomberg para Segurança Viária Global no estado de São Paulo.
De que maneira os aplicativos de entrega têm interferido no trânsito das grandes cidades?
Os aplicativos de entrega por motocicleta interferem no trânsito das grandes cidades de duas principais maneiras. O primeiro é no aumento no número de motocicletas circulando. As pessoas vão buscar sua fonte de renda nas entregas desses aplicativos. Ou seja, pessoas que trabalhavam de alguma outra forma ou não estavam no mercado trabalho passam a ocupar esse espaço. Além das entregas, tem o serviço de passageiros por motocicleta, que aí cumpre um desserviço maior ainda, que é o de tirar pessoas do transporte coletivo e colocar nas motocicletas. A segunda grande interferência é na forma como esses motociclistas se deslocam. Os aplicativos impõem grandes pressões, de diferentes maneiras, para que as entregas sejam feitas em grande quantidade e de forma rápida. Isso faz com que a tomada de decisão dessas pessoas não pense em segurança, em uma forma de se deslocar que permita o respeito às regras, principalmente aos limites seguros de velocidade, e faz com que, em grande parte, muitos deles tenham comportamento de risco. Isso inclui desrespeito aos sentidos da via, aos semáforos, entre outros.
Quais medidas têm sido tomadas por cidades de outros países que já perceberam o impacto dos aplicativos de entrega no trânsito?
Podemos citar aqui duas medidas interessantes de referência. Uma delas de Nova York, que atua levando em conta outras camadas do sistema seguro, reconhecendo que a cidade oferece infraestrutura segura, que tem uma política de gestão de velocidades eficaz em suas ruas e que enfrentou essa questão criando uma regulamentação que impõe algumas coisas. A primeira delas, uma taxa básica de pagamento para todos os cidadãos que prestarem serviço naquele dia para o aplicativo. Ou seja, ao entrar naquele aplicativo e trabalhar por um número “x” de horas, ele já recebe um valor mínimo. Seu faturamento total não depende da velocidade, da quantidade de entregas. O segundo ponto diz respeito às distâncias permitidas para cada corrida, para cada entregador. As pessoas não vão percorrer grandes distâncias, não precisam circular em alta velocidade. Mais ainda, a cidade oferece uma competição para quem quiser fazer entregas por bicicleta. A cidade de Nova York tem uma rede ampla, segura e confortável de ciclofaixas e ciclovias, que permite que as pessoas possam escolher esse meio de transporte, percorrendo uma distância equivalente às motocicletas e de forma rápida. Garantindo que, nas ruas, a velocidade operacional das vias não passará dos 40 km/h. Isso faz com que um ciclista e um motociclista consigam sair e chegar no mesmo ponto, aproximadamente no mesmo tempo. A outra medida, que é um pouco mais recente mas extremamente elogiável, estamos buscando a coleta de resultados, é de uma cidade que recebe o apoio da iniciativa Bloomberg para a segurança viária global, que é Adis Abeba, na Etiópia. A cidade criou uma lei que obriga o compartilhamento de dados das empresas de aplicativo com a prefeitura e que essas empresas sejam responsáveis por garantir a circulação em velocidades de até 50 km/h das motocicletas por telemetria. E essas informações devem ser compartilhadas com a cidade. Ou seja, se o motociclista ultrapassar essa velocidade, um sistema na sua moto, com uma peça oferecida pela prefeitura, apita, toca um alarme, uma luz vermelha, mostrando que excedeu uma vez sequer a velocidade e só vai ser interrompido em um ponto de checagem oferecido pela prefeitura. Isso faz com que as empresas se responsabilizem por dar treinamento e oferecer um sistema de tempo, pagamento e prestação de serviço da entrega que seja compatível com essas velocidades determinadas pela prefeitura.
Como uma cidade como São Paulo pode se adaptar a esse novo perfil de deslocamento?
Uma cidade grande como São Paulo precisa agir em diversas frentes e pensando em curto, médio e longo prazo. Para começo de conversa, a cidade de São Paulo já tem um plano de segurança viária, que foi estabelecido em 2019, mas que perdeu a sua força, o comitê de monitoramento e implementação, que não existe mais, que não se reúne mais, embora devesse fazer por parte de decreto, e perdeu, nas metas estratégicas, a meta de salvar vidas no trânsito. Então, ao falar de salvar vidas ou de segurança para esse novo perfil de deslocamento, a gente, primeiro, tem que olhar para a cidade como um todo. Tem que fazer uma boa gestão de velocidades. São Paulo já conta com todas as vias arteriais com a velocidade recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 50 km/h, mas a gente tem visto que a fiscalização tem caído em relação à velocidade. Se as pessoas não se sentem devendo cumprir as regras e os limites de velocidade, elas vão cometer comportamentos de risco. Fazer a gestão das velocidades é a forma mais efetiva de salvar vidas no trânsito, inclusive de motociclistas. Na outra frente de atuação, São Paulo é a maior cidade do Brasil e talvez a que mais consiga se colocar frente à frente com esses aplicativos para estabelecer medidas, como fizeram as cidades de Nova York e Adis Abeba, como já citei anteriormente. É uma cidade que pode abrir conversa com essas empresas, demandar coisas, como compartilhamento de dados, a quantidade de vítimas que essas empresas têm entre os prestadores de serviço. Para se demandar das empresas desde questões relacionadas a atendimento pós-sinistro, cobrindo com custos e amparo as suas recuperações, até responsabilidades não só pelas vítimas, mas até por comportamentos de risco, como fez a cidade de Adis Abeba, que não deixa seus motociclistas excederem o limite de 50 km/h. Mas, lembrando, que regulamentar é importante como maneira urgente, mas a gente não pode esquecer que, quanto mais motocicletas a gente tiver circulando nas vias, mais vítimas de trânsito a gente vai ter. A motocicleta é um transporte que traz insegurança de forma intrínseca. Não existe forma segura de circular, garantidamente, com motocicleta, acima dos 30 km/h.
Mostramos em reportagem especial do Metrópoles, publicada no início de agosto, que, em alguns casos, entregadores se deslocam até 4 km para levar um copo de café ao cliente. Existe algo que fundamente, de forma racional, um deslocamento dessa natureza pelas vias da cidade?
É a lógica da gamificação, que está sendo criada e aprimorada pelas plataformas. Esses aplicativos usam rankings, metas e bonificações para estimular os entregadores a aceitarem qualquer corrida, independentemente da distância ou da segurança. Isso incentiva comportamentos de risco, como excesso de velocidade, manobras perigosas e também longas jornadas. Do ponto de vista do sistema seguro, é inaceitável que empresas transfiram todo o risco para o entregador e para a cidade sem assumir nenhuma responsabilidade pela proteção da vida. Não só dos entregadores que estão prestando o serviço a elas, mas também e, principalmente, pelas pessoas com quem dividem as ruas. Algo que deveria ser central, que é a segurança viária, de todos os envolvidos direta e indiretamente no sistema que estão criando, fica não em um segundo plano, mas em um plano extremamente distante de uma lógica de mercado que maximiza o risco para toda a sociedade.
Quais os impactos para a mobilidade urbana do aumento expressivo da frota de motos?
Enquanto cada vez mais temos visto demandas por veículos seguros em nossas vias, com seis airbags, latarias cada vez mais capazes de amortecer os impactos em caso de colisão, nas motocicletas a gente sempre vai ter, no lugar desses equipamentos de segurança e amortecimento de impacto, o próprio corpo humano, que não suporta impactos de mais de 30 km/h. Portanto, no caso de uma colisão, o motociclista vai estar lá, simplesmente, com seu corpo atuando como lataria e airbag ao mesmo tempo. Os capacetes cumprem uma função fundamental, mas não são capazes de amortecer impactos em outras partes do corpo e, muitas vezes, nem no próprio pescoço. Foi observado, no Brasil, um primeiro boom de venda e produção de motocicletas no final dos anos 1990, sendo intensificado no começo dos anos 2000, com a redução de quase todos os impostos relacionados a motos. A produção teve um grande ganho econômico, aumentando em 24 vezes, mas o aumento de mortes no trânsito de motociclistas também aumentou em 24 vezes. Esse custo social está diretamente atrelado ao aumento da circulação de motocicletas. E o custo econômico é uma forma barata, que vende velocidade e rapidez para as pessoas, não tem atrelado nessa equação todo esse custo social de vidas perdidas e pessoas lesionadas para o resto de suas vidas. Segundo o engenheiro e sociólogo Eduardo Vasconcelos, só a escravidão supera a motocicleta em destruição social no Brasil. Para combater as mortes de motociclistas, que em 1998 representavam 6% das mortes no país, e hoje representam 33%, a gente precisa pensar na produção e nas vendas de moto. Para isso, precisa ter políticas que ofereçam outras formas de se deslocar. Tanto por bicicleta, mas principalmente focando em um transporte coletivo que seja mais amplo, eficiente e barato para a sua população. Para a gente conseguir isso, é preciso pensar em uma grande equação que cruze todos os custos econômicos, que a gente possa trazer à motocicleta o seu real valor de impacto danoso à sociedade e possa oferecer isso, subsídios ao fomento do transporte coletivo nas cidades para a implementação de ciclovias seguras e confortáveis.
Como você vê a implementação do mototáxi na cidade de São Paulo?
Em relação ao serviço de transporte de passageiros por moto em São Paulo, a gente pode pegar todas as camadas de risco e danosas à sociedade que eu já mencionei e acrescentar o fator de que começa a ter o dobro de pessoas em cima da motocicleta. São pessoas que estão deixando de usar o transporte coletivo para optar por esse serviço com moto. Falando de São Paulo, é uma cidade onde não existe a cultura do mototáxi consolidada, diferentemente do Rio de Janeiro, de Salvador, onde esse meio de transporte começou em áreas que não eram acessadas pelo poder público com transporte coletivo, então em comunidades, em morros onde não passam ônibus ou estão distantes. Em São Paulo, isso existe de forma muito pontual, nas bordas da cidade, principalmente na conexão com municípios vizinhos. Essa cultura não existe na cidade de São Paulo e ao ter grandes empresas de aplicativos oferecendo esse tipo de transporte é uma cultura que pode ser mudada e ser extremamente danosa para a cidade como um todo, aumentando ainda mais o número de vítimas no trânsito, de motociclistas perdendo suas vidas, tendo em vista que isso é algo que já vem acontecendo mesmo sem a atuação desses aplicativos. Na cidade de Salvador, esses aplicativos começaram a atuar de forma mais intensa há dois anos e houve um aumento de 100% no número de mortos de passageiros de motocicletas. É uma questão que ressurgiu no início do ano, trazendo uma pesquisa econômica dizendo que haveria um grande aumento do PIB na cidade de São Paulo, levando para a população uma opção de escolha extremamente desequilibrada com o transporte coletivo. Nas semanas em que houve a tentativa da implementação pelos aplicativos, as corridas estavam custando menos de R$ 1, algumas poucas dezenas de centavos. Em um momento em que havia acabado de subir o preço da passagem de metrô, trem e ônibus na cidade de São Paulo. Isso ilustra justamente o nicho de mercado que se quer ocupar com esse serviço. E, aí, a prefeitura deve se responsabilizar diretamente por garantir que o transporte coletivo supra essa demanda. Afinal, os principais usuários, o público-alvo desse serviço por aplicativo de passageiros em motocicletas, eram justamente nas bordas da cidade, onde a infraestrutura é mais precária, sob todos os pontos de vista, desde calçadas, iluminação, mas principalmente de acesso aos ônibus. Então, a prefeitura está certa em dizer que esse serviço oferecer um grande risco à segurança viária das pessoas, mas a prefeitura não tem feito seu papel de garantir um sistema seguro para a sua população, visto que nos últimos quatro ou cinco anos, as mortes no trânsito vêm aumentando vertiginosamente na cidade, principalmente de motociclistas.