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    De igreja a moradia popular: entenda emendas que privatizam ruas de SP

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    Igreja, indústria, empresa de carros, setor imobiliário, projeto de moradia popular. As emendas de vereadores que autorizam a venda de ruas e terrenos públicos da cidade para a iniciativa privada podem atender aos interesses de diferentes segmentos na capital paulista.

    Os artigos foram incluídos no projeto de lei 673/2025, enviado pelo Executivo à Câmara Municipal, que tinha como objetivo liberar a venda da Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, nos Jardins, a uma incorporadora. A Prefeitura planeja vender a via por R$ 16 milhões.

    3 imagensTravessa teve todos os imóveis demolidos por incorporadora que quer construir empreendimento no localTravessa Engenheiro Antônio de Souza Barros JúniorFechar modal.1 de 3

    Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior, nos Jardins, em São Paulo

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    Travessa teve todos os imóveis demolidos por incorporadora que quer construir empreendimento no local

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    Travessa Engenheiro Antônio de Souza Barros Júnior

    Jessica Bernardo/Metrópoles

    No caso das emendas dos vereadores, ainda não há detalhes sobre quanto cada terreno poderá custar. A decisão sobre a venda ou não dos locais cabe à Prefeitura de São Paulo, que deverá analisar os casos. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) ainda não sancionou o projeto e pode vetar algumas emendas.

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    Enquanto isso, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) entrou com uma ação na Justiça questionando o PL 673/2025. Para o órgão, há risco de dano irreversível se as vendas forem efetuadas já que não houve debate com a sociedade sobre o tema. O caso ainda não foi julgado.

    Mas, afinal, qual a história das emendas que autorizam a privatização de áreas públicas e como são esses lugares? Relembre abaixo quais endereços podem ser vendidos e os interesses envolvidos em cada um deles.

    Rua América Central e sua travessa, em Santo Amaro

    Um dos casos mais surpreendentes do projeto de lei foi a autorização para a venda da Rua América Central, no trecho entre a Rua La Paz e a Rua Ada Negri, em Santo Amaro, na zona sul da cidade. A emenda, do vereador Marcelo Messias (MDB), prevê ainda a venda de uma travessa da Rua América Central, que dá acesso a uma vila de casas. Os moradores da vila, no entanto, só ficaram sabendo do projeto depois que ele foi aprovado.

    “Vender uma rua pública? Isso é uma coisa que eu nunca imaginei, nem em teoria da conspiração. […] Você vê muitas pessoas que têm casas em ruas sem saída, fecham a rua, e depois têm que abrir porque é proibido. Aqui eles querem fazer o contrário. Uma rua que é pública, que tem casa, tem empresa, e eles [vereadores] querem vender. Isso é impossível”, diz o morador do local José Carlos Pezibin, de 72 anos.

    Empresário com uma fábrica na Rua América Central, Ivan Nazarenko também se disse espantado com a situação. “Eu tenho 61 anos, eu nunca tinha ouvido falar disso.” Ele diz que tentou entrar em contato com o vereador Marcelo Messias para cobrar informações sobre o projeto, mas não foi respondido.

    “Que garantias eu terei de ter liberdade de acesso para a minha empresa? […] Eu não tenho garantia de que um caminhão meu vai conseguir entrar aqui dentro, por exemplo.”

    5 imagensRua América Central, em Santo Amaro, tem vários imóveis da ApsenViela com casas na Rua América CentralViela na Rua América Central dá acesso a vila de casasQuintal de casa em viela da Rua América CentralFechar modal.1 de 5

    Empresário tem fábrica em rua que pode ser vendida e diz que privatização do endereço o deixará sem garantias de livre acesso ao imóvel

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    Rua América Central, em Santo Amaro, tem vários imóveis da Apsen

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    Viela com casas na Rua América Central

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    Viela na Rua América Central dá acesso a vila de casas

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    Quintal de casa em viela da Rua América Central

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    Atualmente, boa parte da rua é dominada por empreendimentos da farmacêutica Apsen, que possui todos os lotes de um dos lados da via e pelo menos metade dos imóveis do outro lado. Recentemente, representantes da farmacêutica passaram a abordar os vizinhos com propostas para comprar seus imóveis.

    Na vila de casas cujo acesso se dá pela Rua América Central, dois moradores já venderam seus imóveis para a empresa. José Carlos, no entanto, diz que sua família não tem interesse em sair dali.

    “Nunca pensei em sair, eu quero morrer aqui. Meus pais fizeram um sacrifício para comprar essa casa. Minha mãe trabalhava de cozinheira, meu pai tinha um bar e vendeu ele, fez um acordo para comprar aqui. […] Foi suado, não veio do governo, não veio de mão beijada”, afirma José Carlos.

    Ele e a irmã dizem que a última proposta feita pela farmacêutica para comprar o imóvel aconteceu dois dias antes de o projeto ser votado. “Acho que eles já estavam sabendo de alguma coisa”, diz Eva Pezibin, 83.

    Em nota, a Apsen disse que aguarda a decisão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) sobre o projeto de lei para se posicionar. “A Apsen reafirma seu compromisso em contribuir de forma construtiva com a sociedade e com a comunidade em que atua”, termina a nota.

    Das oito emendas apresentadas ao projeto 673/2025, essa foi a única sobre a qual a prefeitura já se manifestou. Em nota, a gestão Nunes disse que o prefeito vetará a emenda.

    O Metrópoles questionou o vereador Marcelo Messias (MDB) sobre o que o motivou a protocolar a emenda, mas o parlamentar não quis comentar o caso. O espaço segue aberto para manifestação.

    Rua Aurora Dias Carvalho, na Vila Olímpia

    Localizada ao lado do antigo Eataly, e com acesso pela Avenida Juscelino Kubitschek, a Rua Aurora Dias de Carvalho, na Vila Olímpia, foi incluída no projeto pelo vereador Sansão Pereira (Republicanos).

    Sem saída, ela dá acesso, pela direita, à lateral do Eataly e aos fundos de uma lanchonete, hoje também fechada. Do lado esquerdo, há um portão, cercado de mato, que permite a entrada no terreno do prédio comercial vizinho, o Edifício JK 1455.

    5 imagensRua Aurora Dias de Carvalho é usada como estacionamentoRua Aurora é sem saída e tem portão de acesso ao terreno ao ladoRua dá acesso à lateral do EatalyVista do Eataly desativadoFechar modal.1 de 5

    Entrada da Rua Aurora Dias de Carvalho, com lanchonete desativada ao lado direito. Do lado esquerdo, fonte de água decora entrada de prédio comercial

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    Rua Aurora Dias de Carvalho é usada como estacionamento

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    Rua Aurora é sem saída e tem portão de acesso ao terreno ao lado

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    Rua dá acesso à lateral do Eataly

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    Vista do Eataly desativado

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    O Metrópoles visitou o local e conversou com seguranças que retiravam materiais do prédio do Eataly. Eles contaram à reportagem que, durante o dia, a rua é utilizada como estacionamento de motos e carros dos funcionários que trabalham no edifício vizinho.

    O lugar também virou ponto para alguns entregadores que param ali para almoçar e descansar. Atrás da lanchonete fechada, crianças em situação de rua usam entorpecentes, segundo os seguranças. A reportagem presenciou algumas crianças fumando no local.

    O terreno do Eataly pertence à Caoa, empresa de distribuição e produção de carros. Funcionários que trabalham na região dizem que a empresa também comprou o terreno onde ficava a lanchonete agora desativada.

    Ao Metrópoles, o vereador Sansão Pereira disse que não foi procurado pela Caoa nem por nenhuma outra empresa para apresentar a emenda, mas sim por um munícipe incomodado com a escuridão da rua à noite.

    “É um [lugar] perigoso para um assalto, um sequestro, um estupro, porque ninguém passa por ali, é uma rua totalmente isolada”, disse o vereador. Sansão gravou um vídeo mostrando a rua escura à noite para justificar a emenda.

    Veja:

    A reportagem perguntou para o vereador se ele chegou a falar com a Prefeitura para melhorar a iluminação pública daquele trecho antes de sugerir a venda do local.

    “Vou te repetir: é uma rua sem saída, não tem residências, ninguém passa ali. Para que gastar num lugar onde ninguém passa?”, afirmou. “[Com a venda], além de trazer segurança para as pessoas, você acaba trazendo recurso para a cidade de São Paulo que pode ser utilizado para políticas públicas”, disse o parlamentar.

    Em 2024, o ex-vereador e presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União), inseriu essa mesma emenda, durante votação de outro projeto de lei. A emenda, no entanto, foi vetada por Ricardo Nunes, com o argumento de que a área tinha acesso a uma “passagem particular”.

    Terreno de 140m² na Faria Lima, no Itaim Bibi

    A emenda apresentada pela vereadora Zoe Martinez (PL) autoriza a venda de uma área de 140 m² em um dos endereços mais conhecidos da cidade: a Avenida Brigadeiro Faria Lima, que abriga o centro financeiro do país.

    O terreno está localizado entre dois lotes comprados pelo grupo Partage, que também é dono do empreendimento onde fica a escultura da baleia metálica na mesma avenida. Um dos lotes é hoje ocupado por uma unidade do McDonald’s e o outro está vazio, mas foi sede, há alguns anos, da Arena XP, onde aconteciam eventos.

    4 imagensDrive-thru do McDonald's da Faria Lima Perito que analisou disputa de terreno onde ficava Córrego do Sapateiro, disse que rio passava ao lado do drive-thru do McDonald's da Faria LimaGrupo Partage comprou terreno do McDonald's e lote vazio ao ladoFechar modal.1 de 4

    McDonald’s na Av. Faria Lima está inserido em terreno onde passava o Córrego do Sapateiro

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    Drive-thru do McDonald’s da Faria Lima

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    Perito que analisou disputa de terreno onde ficava Córrego do Sapateiro, disse que rio passava ao lado do drive-thru do McDonald’s da Faria Lima

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    Grupo Partage comprou terreno do McDonald’s e lote vazio ao lado

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    O Metrópoles pesquisou a história do terreno municipal inserido entre as áreas da Partage e descobriu que o lugar corresponde a um trecho do antigo leito do Córrego do Sapateiro, que ficou seco após a canalização do rio.

    O local foi alvo de uma disputa judicial de anos entre a Prefeitura e uma família de portugueses que defendia ter direito ao usucapião do terreno. A gestão municipal perdeu a disputa em primeira instância, mas o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu ganho de causa para a Prefeitura.

    Como o terreno municipal fica entre os dois lotes da Partage, o principal beneficiado com a emenda é a própria empresa, ligada à construção de empreendimentos comerciais. Na semana em que o projeto foi aprovado, a assessoria da vereadora Zoe Martinez (PL), sem dar detalhes sobre a área, afirmou que a emenda surgiu após pedido de moradores.

    “Moradores têm reclamado que o terreno está vazio há décadas, gera custos de limpeza e manutenção e não traz nenhum retorno para a população. Com a nossa proposta, o valor da venda entra no caixa da cidade e se transforma em benefício para os paulistanos, inclusive, parte do recurso será revertido ao Fundo de Habitação de Interesse Social”, disse a nota enviada ao Metrópoles na ocasião.

    Depois que a reportagem descobriu se tratar de um leito seco do Córrego do Sapateiro, o Metrópoles enviou novas perguntas para a assessoria da vereadora, questionando se ela foi procurada pela Partage e, se não, como descobriu que a área de 140 m² pertencia à Prefeitura, já que não há nenhuma identificação no local.

    A assessoria não respondeu aos novos questionamentos. O espaço segue aberto para manifestação. A reportagem também tentou contato por e-mail com a Partage, mas não teve retorno.

    Rua Canoal, na Vila Andrade

    Inserida no meio de dois terrenos da Igreja Batista do Morumbi, a venda da Rua Canoal, na Vila Andrade, atende diretamente aos interesses do espaço evangélico. A emenda foi apresentada pelo vereador Isac Félix (PL), que é membro da Igreja Batista.

    “Os lotes que têm nessa rua são da própria igreja e a igreja faz um trabalho social ali todos os dias. Se você passar lá agora vai ter criança lá no judô, no balé, e é tudo gratuito para a comunidade. Isso aí é até uma contrapartida pro trabalho social que a igreja faz”, afirmou ele ao Metrópoles. dizendo que apresentou a emenda por vontade própria, e não a pedido da entidade.

    O vereador afirmou ainda que os prédios do entorno acabaram fazendo a rua como “garagem” de carros, o que atrapalha o movimento da igreja no local, e que a mudança ajudará a melhorar também a segurança no endereço: “Ali é rota de fuga”, diz o parlamentar.

    Vista da Rua Canoal, na Vila Andrade

    Em maio de 2024, a Igreja Batista do Morumbi entrou com um pedido na Prefeitura de São Paulo para fechar o acesso à Rua Canoal. A CET se posicionou contra a medida e disse que o endereço conecta dois pontos da Rua Carvalho de Freitas, além de ser utilizado por moradores da região.

    “Nas imediações da Rua Canoal, existe uma escola e condomínios de edifícios residenciais, de modo que há fluxo veicular de passagem e também ocorre demanda por estacionamento, tanto no período diurno como noturno. Pelo exposto, no momento, somos favoráveis a manter as condições atuais da via”, afirmou a CET no processo.

    Depois da manifestação da CET, o pedido da igreja foi indeferido. O Metrópoles enviou um e-mail para a igreja, mas não foi respondido até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.

    Terreno público de 25,6 mil m² na Rua Keia Nakamura, em Guaianases

    Único artigo do projeto que não foi feito pela base do governo Nunes, a emenda que autoriza a venda do terreno público com 25,6 mil m² na Rua Keia Nakamura, na região de Guaianases, na zona leste da cidade, foi apresentada pelo vereador João Ananias (PT).

    O petista, no entanto, atrelou a autorização para a venda do local à construção de 720 apartamentos de moradia popular no endereço. “[O PL 673/5025] só tinha áreas para grandes incorporadoras ganharem dinheiro. Por isso, eu aproveitei para tentar dar oportunidade para a moradia popular nesse espaço”, disse o vereador ao Metrópoles.

    Mapa indica Rua Keia Nakamura, em Guaianases, na zona leste. Terreno na via foi incluído em emenda de privatizaçãoMapa indica Rua Keia Nakamura, em Guaianases, na zona leste. Terreno na via foi incluído em emenda de privatização

    O parlamentar defendeu que a ideia da emenda é viabilizar um projeto do Minha Casa Minha Vida na região, ajudando a combater o déficit habitacional na cidade. Para isso, seria utilizado um projeto de moradia popular desenvolvido pela Associação Comunitária Florestan Fernandes, que já atua na zona leste da cidade e tem creches em convênio com a Prefeitura de São Paulo.

    Apesar de o entorno do terreno ser cercado de área verde, o vereador defende que o projeto está limitado a um trecho em que não haverá necessidade de desmatamento.