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Do céu ao inferno: o relato de uma brasileira traficada para a Europa

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Do céu ao inferno: o relato de uma brasileira traficada para a Europa

Era outubro de 2024 quando Estela (nome fictício) recebeu, aos 22 anos, uma proposta tentadora que, inicialmente, pareceu um convite direto para mudar sua vida.

Moradora de São Paulo (SP), ela buscava alternativas que acreditava que a levariam a uma vida bem-sucedida e sem preocupações, especialmente no quesito financeiro. Atuava como acompanhante na mesma cidade em que vivia.

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De uma hora para outra, porém, recebeu uma proposta de uma amiga recém-conhecida: viajar para a Europa para trabalhar com a elite e receber cerca de € 1 mil por dia —  o equivalente a aproximadamente R$ 6,3 mil.

Naquele mês, Estela acabara de se descobrir mulher transexual e estava empolgada para ser submetida aos procedimentos estéticos que lhe dariam o corpo com o qual se identificava.

No entanto, cerca de dois meses depois, viu os desejos pessoais serem frustrados por uma viagem que passou de sonho a pesadelo logo após o desembarque na “Cidade Luz”, Paris, na França.

O primeiro contato

Estela não sabia, mas havia sido alvo de uma rede estruturada de tráfico de mulheres voltada à escravidão sexual.

“Fui levada com falsas promessas de oportunidades melhores, mas, ao chegar, fui obrigada a me submeter a situações de exploração e violência”, desabafou em entrevista à coluna.

Logo após se encontrar com aqueles que lhe haviam prometido uma rotina luxuosa, Estela teve seu passaporte confiscado. Estava ali o primeiro sinal de que teria sua liberdade roubada.

“Foi muito estranho como tudo ocorreu. Essa menina [que fez o convite] apareceu do nada e já veio falando diretamente desse assunto. Dizia que o Brasil não era para mim, que eu deveria ir para a Europa, e então ela passou o contato da cafetina”, lembrou.

Diferentemente da propaganda feita pela amiga misteriosa, a vida no outro continente estava longe do glamour. “Retiraram minha liberdade, controlaram meus movimentos, e me colocaram em condições degradantes e sem qualquer respeito pela minha dignidade ou segurança.”

Estela alega que aquela não foi uma escolha genuína. Na verdade, sente que foi enganada. Sentia-se enjaulada em uma prisão invisível, onde o medo, as ameaças e a manipulação psicológica eram usados como armas.

Sistema organizado

A estrutura que capturou Estela é coordenada. Segundo ela, ao chegar no aeroporto, as vítimas são recepcionadas por uma espécie de “secretária” da máfia, que abriga em sua bolsa de ombro todos os passaportes das mulheres escravizadas.

A partir dali, a engrenagem criminosa passa a funcionar. Telefonistas são responsáveis por controlar a agenda, escolher os clientes e marcar as “sessões”.

“Antes da viagem, eles avisam que o valor para ir até a França fica em torno de € 12 mil, mas avisam que é possível quitar a dívida rapidamente. Eu realmente paguei rápido, só que, logo depois, estimularam uma espécie de multa em € 19 mil”, explicou.

Além da extorsão, Estela e suas companheiras eram submetidas a sessões de tortura — físicas, sexuais e psicológicas. “Quem agride são os clientes, a mando deles. Às vezes, abríamos a porta do quarto e do nada nos deparávamos com um homem agressivo, que nos roubava, por exemplo.”

Estela relembra, com angústia, que certa vez, em Lyon, cidade localizada na região centro-leste do país, a cerca de 470 km ao sul de Paris, foi abusada sexualmente por um cliente após se impor aos cafetões.

“No momento da violência, eu pedia socorro, mas eles não respondiam. Eu mandava mensagem, mas a menina que estava comigo no apartamento não falava nada.” Ela literalmente gritava, mas não era ouvida.

Marcas inapagáveis

Diante das inúmeras agressões, Estela desabafa dizendo que se viu desesperada e tomada pela sede de vingança. “Me peguei com raiva do próprio país, com raiva de tudo. Me senti injustiçada. Eu nunca queria ter passado por isso.”

Com os planos de trabalhar em solo europeu, conquistar independência e ajudar a própria família frustrados, ela, com medo de ser morta e ter os órgãos traficados, decidiu agir.

O plano de fuga

“Eles me enviaram para uma cidade que fica ao lado da Bélgica, rota de tráfico humano. Eles avisaram desde o início que era muito perigoso o tráfico de órgãos. Naquele momento, eu estava percebendo uma movimentação estranha no apartamento e tudo o que eu pensei em fazer foi ligar para a polícia”, relembrou.

Corajosa, Estela ligou e solicitou escolta até onde pudesse pegar um trem o mais rápido possível. “No momento em que eu estava indo para a estação La Gare, escoltada pela polícia da França, eles [cafetões] começaram a me enviar mensagens com ameaças, como se soubessem que eu estava indo embora.”

Apesar do medo e da intimidação, Estela contou que não foi difícil escapar, uma vez que teve todo o apoio da polícia.  “Fugi de trem para a Alemanha e fui direto para Colônia, onde fiz as denúncias e o pedido de asilo ao governo.”

Decidida a passar um tempo em Munique, na Alemanha, ela passou a organizar a própria agenda para conseguir arcar com os custos de vida e, posteriormente, de voltar ao Brasil.

Entretanto, caiu em uma emboscada. Em um dos atendimentos, um cliente raspou sua cabeça e deixou claro que foi enviado por alguém. “Depois que rasparam minha cabeça, eu vi que não era só na França, que eles estavam na Alemanha, na Europa inteira, então decidi voltar para casa.”

De volta ao Brasil

O voo que lhe trouxe de volta à sua terra natal aterrissou no Brasil há cerca de um mês, em 5 de agosto.

Após ter se virado sozinha por oito meses, Estela decidiu que era hora de voltar para casa. Estava esperançosa, queria se reconstruir em seu apartamento na maior metrópole do Brasil.

À sombra do medo

Mas, o pesadelo continua. Ela confidenciou que desde que escapou dos cafetões, se viu envolta em uma nuvem de ameaças. Passou a temer a todos. Deixou de confiar até mesmo em conhecidos.

“Eu não saio nem para ir ao mercado. Não faço absolutamente nada. Tenho medo de sair na rua, de ver o sol, de alguém fazer alguma coisa comigo. Eles falaram que se eu pisasse no Brasil eu morreria, que iriam atrás da minha família”, desabafou.

Segundo Estela, são duas pessoas que orquestram as ameaças. Por meio de mensagens, a dupla afirma que criará obstáculos em sua vida profissional e que a  matará.

Para impulsionar o medo, eles afirmam que integram o Primeiro Comando da Capital (PCC) e que os integrantes da facção criminosa  a encontrarão.

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