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    Entre samba e feitiço: o conto de fadas sombrio que rouba turistas

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    Pé na areia e caipirinha: a famosa combinação brasileira que atrai turistas, sobretudo estrangeiros, virou armadilha no Rio de Janeiro (RJ). Golpistas têm se aproveitado de quem desconhece o sabor da bebida para colocar um ingrediente secreto — entre a cachaça, o limão e o açúcar, o sedativo clonazepam tem sido usado para “apagar” temporariamente as vítimas e viabilizar roubos.

    À coluna, a delegada Patrícia Alemany, titular da Delegacia Especial de Apoio ao Turismo (DEAT), detalhou o golpe do “Boa noite, Cinderela”, que tem protagonizado investigações da unidade policial.

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    Segundo ela, apesar de ter repercutido na imprensa nos últimos tempos, em decorrência de novos registros de ocorrências, a falcatrua não é inovação do mundo do crime.

    “O golpe é antigo e ocorre, há muito tempo, em locais de entretenimento, como praias e boates, em diversas regiões do mundo”, ressaltou.

    No Rio de Janeiro, as zonas de atuação se estendem aos pontos turísticos. Conforme apontado por Alemany, locais como os Arcos da Lapa e a Pedra do Sal são áreas visadas pelas quadrilhas.

    Modus operandi

    Nas areias das praias e nos pontos turísticos o golpe é, majoritariamente, aplicado por mulheres. De acordo com a delegada, as criminosas atuam quase sempre em dupla ou em trio, com ações coordenadas e divisão de funções.

    “Quando as vítimas são homens heterossexuais, elas vão a rodas de samba geralmente durante a madrugada, onde as vítimas já ingeriram bastante álcool e estão mais vulneráveis.”

    Enquanto uma faz o papel de sedução, as outras aguardam o momento de ir ao apartamento em que a vítima está hospedada. “Lá, uma dá o remédio e a outra distrai”, contou.

    No caso de vítimas homossexuais, os golpistas, agora do sexo masculino, costumam agir por meio de encontros marcados em aplicativos. “É um aplicativo, de fato, muito direto.  Eles usam emojis para dizer o que querem e os criminosos se aproveitam disso. Os encontros ocorrem na praia, na rua ou nos apartamentos, também durante a madrugada, e lá eles dão o remédio às vítimas.”

    No segundo caso, a investigação torna-se ainda mais desafiadora, visto que as vítimas, ainda que não tenham culpa, sentem-se envergonhadas e, segundo a delegada, evitam registrar ocorrência ou não contribuem para as investigações.  “Em boa parte dos casos, registram ocorrência porque estão no hospital, mas não auxiliam a polícia por causa da vergonha.”

    Ferramenta do crime

    O medicamento usado para adormecer as vítimas é o clonazepam, comercialmente conhecido como rivotril. Ele atua no sistema nervoso central e causa sonolência.

    A delegada destacou que, na teoria, a venda só é permitida com a retenção da receita, devido aos possíveis riscos para a saúde. Na prática, no entanto, a droga é facilmente acessada pelos criminosos.

    “Além disso, quando usado em gotas, ele deixa a caipirinha mais doce. Os estrangeiros gostam muito desse drink, então os golpistas usam isso”, explicou.

    Como não se tornar uma vítima

    A delegada indica que encontros com pessoas desconhecidas devem ocorrer na presença de outras pessoas, evitando ao máximo ir sozinho. Alemany aconselha que bebidas de desconhecidos nunca devem ser aceitas.

    “Não beba a caipirinha trazida pela menina e tome cuidado com a aproximação de trios. No caso de encontros sexuais, prefira ir a motéis, onde é necessário se identificar e as informações ficam registradas. Nesses locais, também pode acontecer, mas é mais improvável”, listou.

    Alemany salientou que, além do estado de vulnerabilidade, por estarem em outro país e falarem outros idiomas, os estrangeiros são visados por usarem aplicativos de bancos internacionais — que não costumam ter aparato robusto de segurança como os brasileiros.

    “Para os criminosos, é muito mais tranquilo porque, muitas vezes, a vítima não consegue comunicar a instituição imediatamente e, às vezes, a transferência só é identificada no dia seguinte”, detalhou.

    Casos recentes

    Em agosto deste ano, um caso envolvendo dois estrangeiros chocou a imprensa britânica, país de onde os turistas vieram.

    Na ocasião, as vítimas, dois universitários, foram abordados por três mulheres em uma roda de samba na Lapa. Eles foram dopados e, à polícia, alegaram ter sofrido um golpe que causou prejuízo estimado em R$ 14,6 mil.

    Uma testemunha gravou o momento em que um dos turistas, um jovem de 21 anos, aparece cambaleando na praia de Ipanema até cair na areia. O vídeo viralizou nas redes sociais.

    À época, o jornal britânico The Sun repercutiu o caso definindo o momento em que o turista cai desacordado como um “momento chocante”. Os rostos de Amanda Couto Deloca, de 23 anos, Mayara Ketelyn Americo da Silva, de 27, e Rayane Campos de Oliveira, de 28, suspeitas do crime, foram estampados na capa daquela edição.

    No vídeo, é possível ver quando elas fogem ao entrar em um táxi.

    Veja:

    Pouco tempo depois desse registro, um turista argentino, identificado como Alejandro Mario Ainsworth, de 54 anos, foi encontrado morto na estrada da Grota Funda, em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio.

    O corpo não apresentava sinais de violência, e os investigadores apuram a possibilidade de que o estrangeiro tenha sido vítima do golpe conhecido como “Boa Noite, Cinderela”.

    5 imagensSuspeito de matar o argentinoArgentino achado morto pode ter sido dopado com Boa Noite CinderelaAs criminosas foram flagradas fugindo após roubar os britânicosO trio acusado de dopar os britânicosFechar modal.1 de 5

    Alejandro Mario Ainsworth, de 54 anos

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    Suspeito de matar o argentino

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    Argentino achado morto pode ter sido dopado com Boa Noite Cinderela

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    As criminosas foram flagradas fugindo após roubar os britânicos

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    O trio acusado de dopar os britânicos

    Punição

    Segundo a delegada, golpistas presos são autuados por roubo qualificado, pelo uso de substâncias que dificultam a defesa da vítima e, na maioria dos casos, também por associação criminosa.

    As penas variam de quatro a 10 anos, mas podem alcançar 30 anos a depender das qualificadoras que podem envolver tentativa de latrocínio e latrocínio.

    Na última semana, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) condenou Claudia Mayara Alves Soliva a 20 anos e 10 dias de prisão em regime fechado pelo latrocínio de Manuel Felipe Martínez Mantilla, um economista colombiano que morreu em outubro do ano passado após ser vítima do golpe no RJ.