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“Eu amo esse infeliz”: o sintoma da depressão conjugal

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“Eu amo esse infeliz”: o sintoma da depressão conjugal

É comum ouvirmos, nas queixas conjugais, a seguinte frase em tom de resignação: “Mas eu amo esse(a) infeliz.” E se permitimos o mal-entendido e dissermos que talvez seja esse exatamente o problema? Talvez ele ou ela pudesse ser um pouco mais feliz…

Viver a dois é uma tarefa árdua — especialmente quando se trata de realmente viver. Muitos casais abandonam essa tarefa após alguns meses ou anos. E, em certos arranjos, é preciso auscultar os cônjuges para verificar se ainda estão realmente vivos.

Na nossa época, o senso comum insiste em acreditar — em uma aliança ingênua com um discurso supostamente médico — que a depressão é um problema apenas de ordem hormonal, cerebral, fruto de baixos níveis de serotonina. E assim se naturaliza, com espantosa leveza, o uso de antidepressivos no Brasil.

O consumo desses medicamentos aumentou de 2023 a 2024 12,4% entre adultos de 29 a 58 anos, segundo levantamento da Funcional Health Tech1. Os antidepressivos são hoje o segundo tipo de medicamento mais utilizado entre os beneficiários, atrás apenas dos antibióticos.

Essa concepção reducionista e biologicista, aliada à facilidade de acesso aos comprimidos e a resistência à psicoterapia, faz com que muitos casais ignorem algo decisivo no diagnóstico da depressão: ela não é um problema apenas do cérebro, que nos controla como um pequeno homenzinho dos filmes da Pixar. A depressão é efeito das relações que estabelecemos, das escolhas que fazemos e dos destinos que damos ao nosso amor, desejo e gozo.

A crença de que o problema é apenas individual, de que a depressão é uma dificuldade isolada, acaba inibindo a expressão legítima dos conflitos e sentimentos de desamparo e mágoa que deveriam fazer parte do cuidado mútuo nas relações2. Esse silenciamento tem um efeito que retroalimenta a própria depressão dos membros do casal.

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Em um estudo conduzido pelo psicólogo Mark Whisman3, foi revelado que a depressão de ambos os membros de um casal tem um impacto significativo na satisfação conjugal. A pesquisa mostrou que tanto os níveis de depressão e ansiedade de cada pessoa quanto a depressão do parceiro influenciam diretamente o relacionamento. No entanto, a depressão foi identificada como o fator com maior peso, superando a ansiedade.

Mesmo no interior do discurso biológico, o biólogo Ludwig von Bertalanffy já demonstrou que o comportamento de um membro do sistema familiar afeta o comportamento, a cognição e as emoções dos outros membros. Esse argumento é reforçado por Ayotte, que identificou um viés de gênero na experiência da depressão conjugal: o humor deprimido da esposa é significativamente afetado pelo humor deprimido do marido — mas o inverso não se mostra verdadeiro.

Em outras palavras, um marido infeliz afeta mais a esposa do que o contrário. Outro estudo, na direção oposta, demonstrou que o bem-estar do marido era previsto pelo estado de saúde da esposa — mas o bem-estar da esposa não era influenciado pela saúde do marido.

Há um consenso em uma série de outros estudos de que manter um bom relacionamento conjugal, contribuir economicamente e dividir responsabilidades domésticas de forma significativa, assim como estar minimamente satisfeito no casamento, são fatores que efetivamente previnem e atenuam quadros depressivos nos casais.

Uma anedota ficcional — e nem tanto: uma esposa histérica, viva, queixa-se ao marido obsessivo, morto-vivo. Reclama que não fazem mais nada, não viajam, não frequentam festas, não se divertem, vivem no automático. Como toda histérica, ela deseja que o Outro deseje por ela, um desejo por procuração. No auge da discussão, ela dá um ultimato: pede para ser surpreendida.

Ele, então, passa a noite debatendo sobre o que fazer. Como surpreender sua mulher? Busca a estratégia contemporânea fundamental: digita no Google “como surpreender uma mulher?”, e extrai a clássica sugestão de um jantar romântico. Ativa um traço da sua personalidade: começa a dar check em cada etapa. Mercado, check. Velas, flores, entradas, prato principal, sobremesa: check.

À noite, ela chega. O jantar está servido. Ela fica feliz com a surpresa, mas, exausta após um dia de trabalho, comenta que gostaria de pular a entrada e ir direto ao prato principal. Ele fecha a cara: ela não está seguindo a ordem, não gostou da surpresa, não está saindo como o planejado, e perde o pouco entusiasmo que lhe fora tão penoso cultivar. Ela percebe o desânimo, e uma nova briga começa.

O que aconteceu aqui? A mulher não sabendo como sustentar seu próprio desejo, necessita do seu marido para isso. Já o marido transformou o pedido da mulher em uma demanda a ser executada. Mas, o que ela realmente pedia era justamente o que ele não soube dar: a manifestação do seu desejo. A grande surpresa seria ele querer algo — e não apenas executar uma lista. Um desejo para além da demanda. Um desejo vivo.

O problema é que encontramos na contemporaneidade uma expropriação crescente do nosso gozo, uma desertificação dos nossos desejos — o consumo capitalista e a falsa “vida” online têm se tornado os meios mais imediatos para isso, capturando os sujeitos e se tornando a infidelidade mais aparente e ao mesmo tempo velada dos casais.

A ausência de entusiasmo e alegria de um cônjuge, seu aprisionamento em certos dispositivos de gozo, são algumas das areias mais movediças dentro de um relacionamento, tragando o parceiro para uma tristeza que não necessariamente lhe corresponde por direito, mas que de alguma maneira também se torna sua responsabilidade.

Talvez, se cada um se perguntasse honestamente: “O que é um desejo além da demanda?”, buscasse a alegria desconhecida que lhe cabe e se autorizasse a convidar o outro para essa aventura, a vida pudesse seguir um pouco mais feliz — juntos, ou não.

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