Um dos endereços municipais que poderão ser colocados à venda pela gestão Ricardo Nunes (MDB) com a aprovação do projeto de lei 673/2025, que permite a privatização de ruas e espaços públicos da capital paulista, é um terreno cuja posse a Prefeitura de São Paulo disputa há anos na Justiça e onde passava um famoso rio da cidade.
Com 140m² e localizada na Avenida Brigadeiro Faria Lima, no centro financeiro do país, a área é, na verdade, o leito seco do Córrego do Sapateiro, que foi canalizado durante as obras de construção da Avenida Juscelino Kubitschek. O córrego, que nasce na Vila Mariana, é conhecido por passar dentro do Parque do Ibirapuera.
Depois da canalização do Sapateiro, parte do terreno onde antes ficava o rio no Itaim Bibi foi incorporada por uma família de portugueses que morava ao lado do córrego. Anos mais tarde, o terreno ampliado, que unia tanto a casa da família quanto o leito seco do rio, foi alugado pelos moradores para a lanchonete McDonald’s. É onde está hoje a unidade da rede de fast food no número 3.805 da Avenida Brigadeiro Faria Lima.
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McDonald’s na Av. Faria Lima está inserido em terreno onde passava o Córrego do Sapateiro
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Grupo Partage comprou terreno do McDonald’s e lote vazio ao lado
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Drive-thru do McDonald’s da Faria Lima
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Perito que analisou disputa de terreno onde ficava Córrego do Sapateiro, disse que rio passava ao lado do drive-thru do McDonald’s da Faria Lima
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Muro preto separa terreno vazio de unidade do McDonald’s
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Proprietária do terreno do McDonald’s e de área vizinha, Partage seria maior beneficiada com venda de leito seco do Córrego do Sapateiro
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Partage, que já é dona do empreendimento com baleia metálica na Faria Lima, comprou terreno em frente
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Quem olha da rua, não vê nenhum vestígio do que era o rio no endereço. Uma análise feita por um perito, e anexada a um processo ao qual o Metrópoles teve acesso, afirma, no entanto, que o leito do Córrego do Sapateiro passava entre o drive-thru do McDonald’s e o terreno vizinho, hoje vazio – mais especificamente, a partir do meio-fio entre os lotes.
Durante 25 anos, a Prefeitura brigou na Justiça para manter o direito ao terreno, argumentando que a família de portugueses não poderia ser proprietária do leito do rio. Em 2024, com a gestão municipal já sob o comando de Nunes, o Superior Tribunal de Justiça atendeu a um recurso da Prefeitura e declarou a área como municipal. Agora, no entanto, o mesmo terreno pode ser vendido à iniciativa privada.
Interesse privado
A principal beneficiária com a autorização para a venda do leito do rio seria a B28 Empreendimentos, do Grupo Partage, que comprou recentemente o lote onde está o McDonald’s e o terreno vizinho, atualmente vazio.
Pela localização, a empresa poderia alegar prioridade para comprar a área municipal, que está entre suas propriedades, e, com isso, ampliar o potencial construtivo do endereço. A Partage atua no setor de empreendimentos comerciais e também é proprietária do terreno em frente aos lotes, onde está a escultura da baleia metálica na Faria Lima.
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Baleia metálica na Faria Lima
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Baleia metálica na Faria Lima fica em frente a empreendimento da Partage
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A emenda ao projeto de lei que autoriza a venda do leito seco do Sapateiro foi incluída no projeto de lei 673/2025 pela vereadora Zoe Martinez (PL). Na semana em que o projeto foi aprovado, a assessoria da vereadora, sem dar detalhes sobre a área, afirmou que incluiu a emenda após pedido de moradores.
“Moradores têm reclamado que o terreno está vazio há décadas, gera custos de limpeza e manutenção e não traz nenhum retorno para a população. Com a nossa proposta, o valor da venda entra no caixa da cidade e se transforma em benefício para os paulistanos, inclusive, parte do recurso será revertido ao Fundo de Habitação de Interesse Social”, disse a nota enviada ao Metrópoles na ocasião.
Depois que a reportagem descobriu se tratar de um leito seco do Córrego do Sapateiro, situado entre dois lotes da Partage, o Metrópoles enviou novas perguntas para a assessoria da vereadora, questionando se ela foi procurada pela empresa e, se não, como descobriu que a área de 140 m² pertencia à Prefeitura, já que não há nenhuma identificação no local.
A assessoria não respondeu aos questionamentos. O espaço segue aberto para manifestação. O Metrópoles também tentou contato por e-mail com a Partage, mas não teve retorno.
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A reportagem entrou em contato com a Prefeitura ao longo de toda a apuração. Questionada, em primeiro lugar, se a gestão já havia recebido algum contato de empresas interessadas em comprar o terreno na Faria Lima antes da votação na Câmara Municipal, a prefeitura não respondeu e disse apenas que projeto 673/2025 passaria por análise do Executivo.
Depois, ao ser perguntada sobre a disputa judicial no terreno de 140 m² entre o McDonald’s e o lote vizinho, a Secretaria Municipal de Gestão disse que a área mencionada ainda não tem registro de propriedade em favor do município e que cabe recurso no processo.
Entenda a briga pelo leito do rio
- A Prefeitura passou a defender na Justiça que era dona dos 140m² do leito seco do rio em 1999, por causa de um processo de usucapião envolvendo a família de portugueses no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). A ação foi movida pela família em meio a uma disputa com herdeiros do ex-dono do terreno.
- Os herdeiros afirmavam que a venda do local para a família portuguesa aconteceu de forma irregular e diziam ter direito ao terreno como parte da herança.
- Já a família portuguesa defendia a regularidade da transação, feita em 1964 e documentada com recibo de compra e venda, e dizia ter ocupado o local por tempo suficiente para ter direito ao usucapião.
- No meio do processo, no entanto, descobriu-se que parte da metragem total alegada pela família como sendo do terreno era, na verdade, fruto do leito seco do rio, que fora abandonado após a canalização do Sapateiro.
- Foi quando a Prefeitura entrou na ação e passou a reivindicar que a área não fosse contabilizada como particular. A Procuradoria-Geral do Município defendeu que um leito deixado após uma obra de canalização, segundo o Código de Águas, deveria ficar com o responsável pela obra, no caso a própria prefeitura.
- A família questionou o argumento, disse que o córrego não era navegável, e por isso seria particular, e alegou que outras decisões da Justiça já tinham sido favoráveis aos ribeirinhos em casos parecidos. Em primeira instância, a Justiça foi favorável à família. O STJ, no entanto, deu razão à Prefeitura.
História do Córrego do Sapateiro
Com nascente na Vila Mariana, na zona sul de São Paulo, o Córrego do Sapateiro também foi chamado de Córrego do Matadouro e Córrego do Curtume no passado. Os últimos nomes eram uma referência ao fato de o rio passar ao lado do Matadouro Municipal e receber os rejeitos e o sangue dos animais.
Antes de ser canalizado, o córrego chegava ao Itaim Bibi avançando entre as chácaras e casas com grandes quintais que dominavam o bairro. Geógrafo e cofundador do projeto Rios e Ruas, que busca dar visibilidade à história dos rios enterrados em São Paulo, Luiz de Campos Júnior diz que ainda se lembra da época em que o Sapateiro foi enterrado.
“O meu avô morava no Itaim Bibi. E, na década de 70, a gente ia brincar de polícia e ladrão lá no riacho, dentro das manilhas [que seriam usadas para a canalização]”.
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Nascente do Córrego do Sapateiro revitalizada por moradores da Vila Mariana
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Na Vila Mariana, onde nasce o Córrego do Sapateiro, moradores fizeram uma ação de revitalização da nascente
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Córrego do Sapateiro no Ibirapuera
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Mapa com bacia do Córrego do Sapateiro entre Vergueiro e Ibirapuera
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Ele conta que o bairro, por muito tempo, ainda guardou vestígios do passado ligado ao rio, como um guarda-corpo de uma antiga ponte que foi esquecido depois da canalização e ficou anos à mostra em uma rua do Itaim Bibi.
Um dos vestígios do rio no bairro são as próprias enchentes em dias de chuva. Até hoje, no verão, as fortes chuvas fazem a água subir na Faria Lima exatamente em frente ao McDonald’s. Também cofundador do Rio e Ruas, o arquiteto José Bueno explica o fenômeno.
“O rio não é só o curso dele. Todo esse entorno pertence ao rio, que é para onde ele vai quando ele enche. Ele vai continuar ocupando a área que sempre foi dele nas cheias. […] A gente subtraiu esses rios da nossa visão, mas isso não quer dizer que eles não existem mais.”