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    Fundo em gestora investigada esconde terreno subfaturado de atacarejo

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    Um terreno milionário vendido abaixo do valor venal pelo Jockey Club de São Vicente, no litoral paulista, acabou em nome de um fundo abrigado por uma das gestoras investigadas no esquema que conecta a Faria Lima ao Primeiro Comando da Capital (PCC). O imbróglio sobre a área, onde está prevista a inauguração de uma unidade da rede de atacarejo Roldão, foi parar na Justiça após sócios do clube suspeitarem que o patrimônio da entidade está sendo dilapidado pela atual gestão.

    O caso do Roldão é um dos exemplos envolvendo os “fundos caixa-preta” da Faria Lima que estão na série de reportagens do Metrópoles iniciada na última quarta-feira (17/9) sobre o mecanismo do mercado financeiro utilizado para blindar o patrimônio de grandes devedores ou para esconder fortunas de organizações criminosas, políticos e empresários.

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    Um levantamento do Metrópoles rastreou ao menos 177 fundos, que somam patrimônio de R$ 55 bilhões, sem auditoria ou que foram considerados inauditáveis por falta de documentos, que possuem apenas um ou dois investidores — em mais da metade deles, o cotista é outro fundo —, e que investem em apenas uma empresa.

    Todas essas características foram apontadas como suspeitas pela Polícia Federal (PF), pela Receita Federal e pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) nos fundos que foram alvo das operações deflagradas em agosto contra o uso deste mecanismo do mercado para lavagem de dinheiro do setor de combustíveis. No Judiciário, a mesma engenharia financeira é apontada como um artifício para fraudes em disputas envolvendo bancos e grandes empresas.

    Do Jockey Club ao Kombi Azul

    O fundo citado na ação judicial está abrigado na gestora Reag, uma das mais atingidas pela Operação Carbono Oculto, deflagrada pelo MPSP. O processo em questão, movido por sócios do Jockey contra o clube, questiona a venda de um terreno de 22 mil m² feita pela direção da entidade em 2022 e pede indisponibilidade dos bens sob risco de dilapidação do patrimônio.

    A suspeita se baseia tanto nos valores quanto nas circunstâncias da venda do terreno, equivalente a três campos de futebol, o que gerou, inclusive, pedido de apuração de eventuais crimes patrimoniais e de falsidade ao MPSP.

    O imóvel tinha valor venal de R$ 14,6 milhões, mas foi vendido por R$ 11,4 milhões para uma empresa criada um mês antes, diz a ação. Segundo o processo, no mesmo dia, a área foi revendida à Reag por R$ 15 milhões. Os autores ação afirma, contudo, que o terreno vale cerca de R$ 100 milhões, enquanto o Jockey sustenta que mesmo o valor venal calculado pela prefeitura “está absolutamente descompassada da realidade mercadológica”.

    Kombi da rede RoldãoKombi Azul da rede Roldão Atacadista

    “Ora, o simples rateio do preço final apontado na referida matrícula indica que cada metro quadrado do imóvel foi vendido pela quantia ínfima de R$ 519,04”, diz a ação. “Vale reiterar que a discrepância entre o valor de venda e o valor de mercado ultrapassa os limites da má gestão patrimonial e adentra possivelmente a esfera da responsabilidade civil e possivelmente penal. A defasagem entre o valor mínimo razoável de mercado e o valor efetivamente recebido pela associação é de mais de R$ 89.000.000,00”.

    Para os autores da ação, o Jockey vendeu um terreno valorizado, em uma operação “nebulosa”, permitindo que empresas privadas explorem a área sem retorno algum à associação. No local do terreno, há a previsão da construção de uma unidade do Roldão Atacadista. O mercado não é parte no processo, mas foi acionado extrajudicialmente pelos autores da ação contra o Jockey. Em sua resposta, afirmou que apenas loca o espaço, que está em nome de um fundo chamado Jaffa.

    O Metrópoles verificou nos dados da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), órgão que regula o mercado financeiro, que o fundo Jaffa, abrigado pela gestora Reag, investe 98% de seus ativos no próprio Roldão.

    A informação também consta da auditoria independente anexada na CVM, que ainda aponta falta de informações suficientes sobre o fundo e justifica sua abstenção de opinião por falta de informações nas demonstrações contábeis do fundo. O Jaffa tem outros dois cotistas, que são outros fundos de investimento, mecanismo de camadas que dificulta a identificação do beneficiário final dos recursos.

    A reportagem verificou o Jaffa recebe aportes de um outro fundo, chamado Kombi Azul. O veículo é um dos símbolos do Roldão, por evocar o início da rede, quando os donos usavam uma Kombi para fazer entregas aos clientes

    O que dizem os envolvidos

    Questionado pelo Metrópoles, o Roldão negou relação societária ou de gestão com o fundo dono do imóvel. “O Roldão Atacadista é locatário do imóvel junto a um fundo de investimento exclusivo e independente, sem qualquer relação com os fundos acionistas da empresa”, diz.

    A rede afirma, ainda, que não há vínculo ou qualquer relação societária ou de gestão entre o fundo dono do imóvel e suas atividades. Além disso, a rede afirmou que “a gestão dos fundos acionistas do Roldão Atacadista é realizada pela Reag, em conformidade com todos os rígidos critérios da legislação aplicável e da CVM”.

    O Roldão ainda afirma não ter qualquer relação com investigações envolvendo a Reag.

    Já o Jockey respondeu ao Metrópoles desconhecer a ação judicial sobre o imbróglio e disse que a venda do terreno é uma “transação absolutamente legítima, aprovada e previamente discutida em amplo órgão colegiado”.

    “Ao que parece, de forma absolutamente leviana e infundada, os associados dissidentes estariam tentando lançar penumbra sobre transação absolutamente legítima, aprovada e previamente discutida em amplo órgão Colegiado. Para além disso, é importante esclarecer que as certidões judiciais do Jockey, além de desabonadoras em razão das elevadas dívidas, limitaram muito o espectro de possíveis interessados, a oportunizar a captação da área por desenvolvedoras imobiliárias”, diz o órgão.

    Na resposta, o Jockey afirmou que “as transações que se seguiram, ao que se tem notícia, encamparam a aquisição por fundo imobiliário, ligado a projetada empresa de atacarejo (Roldão), cuja reputação se mostra hígida e austera”.

    Após ser alvo da Operação Carbono Oculto, a Reag emitiu nota afirmando que “não há qualquer participação da empresa ou de seus executivos em operações de ocultação de patrimônio ou de lavagem de dinheiro” e que “nunca manteve, mantém ou manterá qualquer relação com grupos criminosos, incluindo o PCC, nem com quaisquer atividades ilícitas”.

    A Reag também afirma que “atua em linha com as normas vigentes no mercado financeiro e de capitais” e que há diversos fundos de investimentos mencionados na operação que nunca estivaram sob sua administração ou gestão.

    “Em relação aos fundos de investimento que a empresa manteve prestação de serviço, sua atuação sempre foi diligente e proba, e os fundos foram, há meses, objeto de renúncia ou liquidação. Sua trajetória demonstra práticas sólidas de governança e transparência, com base em ética e rigor técnico”, diz trecho da nota.

    “A Reag seguirá atuando com ética, diligência e transparência, sem qualquer tolerância a desvios, sempre em colaboração com as autoridades e em defesa de um mercado financeiro saudável e de seus clientes e investidores”, conclui.