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    Genro de Trump e sauditas compram a Electronic Arts (Por João Pedro Pereira)

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    A Electronic Arts é um portento dos videojogos. Foi fundada há 43 anos e é responsável por títulos como a série FIFA, o clássico The Sims, e o popular Battlefield, um jogo de guerra multijogador. Anunciou nesta segunda-feira planos para ser comprada e sair de bolsa, num negócio de grandes dimensões. Passemos rapidamente pelos números antes de irmos à pergunta do título.

    A compra rondará os 55 bilhões de dólares. No último trimestre, a empresa faturou 1,7 bilhões de dólares e teve 201 milhões de lucro. Os acionistas vão receber 210 dólares por ação, 25% acima da cotação da quinta-feira passada, quando o preço foi fechado. A operação vai ser financiada em parte com um empréstimo de 20 bilhões de dólares, do banco JP Morgan. O resto são capitais próprios.

    Até aqui, é uma notícia normal de economia. Mas a lista de investidores que vão ficar com a Electronic Arts suscita a questão: será isto apenas um negócio?

    Os compradores são o fundo soberano da Arábia Saudita, que já tinha 10% da Electronic Arts e que tem outras apostas no sector; a firma de investimentos americana Silver Lake, que também está envolvida na compra do TikTok nos EUA; e a firma de investimentos Affinity Partners, criada em 2021 por Jared Kushner, genro de Donald Trump. É difícil ficar indiferente a este trio.

    Dizer que a Electronic Arts é uma gigante dos videojogos é redutor, tal como é redutor dizer que os videojogos são apenas jogos. Esta é uma empresa com um impacto cultural tremendo ao longo de décadas e que já prendeu aos ecrãs mais de 700 milhões de pessoas, muitas delas jovens.

    Os videojogos extravasam o mundo virtual. As competições de esports juntam milhares de jogadores em grandes arenas. O Comité Olímpico organiza há anos torneios de esports e a primeira edição dos Jogos Olímpicos de Esports vai acontecer em 2027, precisamente na capital saudita.

    Mais relevante: os jogos também são propícios ao nascimento de subculturas de todos os géneros. Um exemplo recente e marcante está associado ao assassinato de Charlie Kirk. O atirador deixou balas onde estavam gravadas referências a videojogos populares e enviou mensagens ao seu grupo de companheiros de jogo, nas quais admitiu ter sido ele a disparar e a dizer que se iria entregar à polícia. Os videojogos em que a ação se mistura com salas de chat e outras formas de conversa são usados há anos por organizações extremistas para recrutar jovens.

    O potencial político é real e uma das pessoas que cedo notou isso foi Steve Bannon, um fervoroso apoiante de Trump. Bannon, entre muitas outras coisas, investiu em videojogos nos anos 1990, quando a Internet ainda era incipiente. Como o próprio já disse algumas vezes, incluindo numa entrevista recente, foi nessa altura que percebeu haver naquele submundo um manancial de testosterona (eram, e ainda são, sobretudo rapazes) e raiva latente, que poderiam ser canalizadas politicamente. Isto hoje só pode ser ainda mais verdadeiro.

    Os videojogos são jogos, mas alguns deles também são redes sociais, num sentido puro e mais próximo daquilo que originalmente eram plataformas como o Facebook e o Twitter: sem influencers, entidades oficiais, governos ou imprensa. Também não há algoritmos de permeio, nem grandes filtros de conteúdo; são apenas milhões de pessoas a conversarem diretamente umas com as outras. Outra coisa que os distingue do que habitualmente se entende por uma rede social online é serem mais crípticos e opacos, com jargão próprio e muito menos conteúdo público.

    Há razões de negócio para a compra da Electronic Arts? Seguramente. O mercado dos videojogos é enorme e tem vindo a crescer. Desde os grandes títulos com milhões de jogadores aos pequenos jogos para celulares que ganham dinheiro com publicidade, algumas estimativas colocam as receitas globais perto dos 300 bilhões de dólares, cerca de cinco vezes mais do que os setores da música e dos filmes em conjunto.

    Além disso, a inteligência artificial terá impacto, reduzindo o número de pessoas necessárias para criar um jogo. Também permitirá personagens que interagem com o jogador de forma autónoma, sem necessidade de um guião pré-escrito, algo que abre a possibilidade de mundos virtuais mais complexos e realistas. Em janeiro, a Nvidia lançou uma ferramenta para a criação destas personagens.

    É verdade que os videojogos são um negócio apetecível. Mas é incontornável que o genro de Trump, a ditadura saudita e um futuro acionista do TikTok também acabam de comprar uma espécie de rede social e uma máquina de criar fenômenos culturais.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)