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    Mãe luta há 1 ano para provar que soldado não se suicidou em quartel

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    “Eu volto hoje.” Com esta frase, o soldado do Exército Christian Korosi, de 19 anos, se despediu da mãe e saiu de casa, na zona norte de São Paulo, rumo a mais um dia de trabalho em um quartel do Exército na zona oeste da capital, na madrugada de 27 de julho do ano passado. Às 19h daquele dia, no entanto, três militares bateram à porta da família para informar à mãe de Christian, a assistente jurídica Juliana Korosi, 40 anos, que o combinado não seria cumprido: o jovem que adorava jogar videogame e planejava o noivado havia se matado com um tiro na cabeça, na guarita em que atuava como sentinela.

    A notícia teve o efeito de uma estocada no peito. A visão de Juliana escureceu. Amparada pela filha de 16 anos, ela foi ao quarto se sentar e começou a chorar convulsivamente. Nesse momento, um dos militares, o soldado Alyson Araújo, se aproximou da mulher, tomou suas mãos e falou baixinho, duas vezes: “Tia, o Christian não se matou”.

     

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    Inicialmente, pareciam palavras de conforto momentâneo. Mais tarde, recobrando a consciência e as forças, Juliana entendeu que, na verdade, aquela poderia ser uma mensagem literal.

    Desde então, a mãe tem dedicado seus dias a investigar a morte de seu filho. Após contratar uma perícia particular e ter acesso ao processo, Juliana acredita ter provas que colocam em xeque a versão oficial sobre a morte. Ela diz que “honrar a memória do Christian e provar que ele não é um suicida” é seu propósito de vida.

    Juliana acredita que seu filho foi vítima de acidente ou homicídio. Para trazer à luz as inconsistências da investigação interna do Exército, ela tenta há quase um ano reabrir o processo sobre o caso arquivado pela instituição militar, em outubro do ano passado.

    O Comando Militar do Sudeste (CMSE) afirmou ao Metrópoles, em nota, que realizou novas diligências sobre o caso na quarta-feira (25/9) — mesmo dia em que foi demandado pela reportagem —, atendendo a pedido do Ministério Público Militar (leia mais abaixo).

    Morto com um tiro de fuzil

    O soldado Christian de Paiva Korosi foi encontrado morto dentro de uma guarita do 2º Batalhão de Suprimento, na zona oeste paulistana, na tarde de 27 de julho do ano passado. Na ocasião, ele era o sentinela do posto.

    A apuração interna do Exército concluiu rapidamente que o jovem de 19 anos teria tirado a própria vida com um disparo de fuzil 7.62.

    A versão nunca convenceu a família do soldado, que decidiu encomendar um parecer técnico independente sobre o crime. Segundo Juliana, o relatório trouxe elementos que desmontam a narrativa oficial.

    Entre as falhas apontadas pela investigação independente estão condutas irregulares na preservação da cena, inconsistências balísticas e contradições que colocam em dúvida a versão de suicídio.

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    O laudo elaborado pela consultoria forense, obtido pela reportagem, destacou que os peritos do Exército não registraram fotograficamente todos os elementos da guarita — ignorando, por exemplo, um segundo objeto semelhante a um fuzil, encostado na parede, e manchas de sangue presentes nele.

    Além disso, a posição do estojo deflagrado era incompatível com o local onde deveria ter caído, caso Christian tivesse realmente disparado contra si mesmo. Esses detalhes, segundo os especialistas, fragilizam a credibilidade da perícia inicial.

    “Meu filho estava muito cansado, queria sair do Exército para prestar concurso para a Polícia Militar e eu super apoiei. Ele estava sofrendo perseguições e punições. Estava com planos também de pedir a namorada em noivado. Não faz sentido que ele tenha se suicidado”, afirmou Juliana.

    Ela acrescentou que teve a impressão de que os comandantes de seu filho tentaram “a todo momento” atribuir à família e ao rapaz a responsabilidade pela morte, durante um interrogatório ao qual ela foi submetida após a morte de Christian.

    4 imagensMãe e filho em um fim de semana em casaJuliana, Christian e a irmã mais nova, IzadoraFechar modal.1 de 4

    Christian posa para fora entre a tia Camilly (esquerda) e a mãe Juliana

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    Mãe e filho em um fim de semana em casa

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    Juliana, Christian e a irmã mais nova, Izadora

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    Tiro encostado ou à curta distância?

    Outro ponto central das contradições está no ferimento na cabeça do soldado. O laudo do Exército, como apurou o Metrópoles, descreveu características de tiro encostado — a chamada mina de Hoffmann —, mas também sinais de queimadura e esfumaçamento, compatíveis com disparo à curta distância.

    Para os técnicos independentes, essa combinação sugere a possibilidade de dois disparos, hipótese que jamais foi considerada pelos peritos militares.

    A análise da trajetória do tiro reforça as suspeitas. O projétil teria atravessado o crânio do soldado, mas não foram documentados vestígios de impacto na parede que ficava atrás da vítima na guarita, o que é esperado em um disparo transfixante.

    Também não foram descritas manchas de sangue correspondentes ao “efeito de forward spatter” (quando o sangue é projetado na mesma direção do movimento do projétil), corroborando a suspeita de que a cena pode ter sido “manipulada” ou “mal registrada”.

    A advogada Marinalva de Aguiar, contratada pela família de Christian para acompanhar o caso, afirmou que, na ocasião do crime o Exército não acionou a Polícia Técnico-Científica e assumiu a investigação, feita somente por militares.

    “Muita coisa ali foi acobertada. Hoje a gente não consegue [coletar] DNA mais. Passou-se muito tempo. Por que o Exército estaria fazendo isso? É óbvio. Jamais a União vai falar: ‘Nós cometemos um erro’.”

    Celular entregue sete meses após o crime

    O parecer independente ainda questiona o manuseio de provas cruciais. O celular de Christian, por exemplo, só apareceu cinco dias após a morte do jovem, sem registro do local exato onde foi encontrado, e permaneceu lacrado em posse do Exército por sete meses, sem perícia. Só então foi entregue à mãe, após pedido do Ministério Público Militar.

    Já o fuzil que teria sido encontrado junto ao corpo do soldado só foi encaminhado para exame residuográfico 58 dias depois da morte — tempo suficiente para sumirem vestígios químicos que poderiam comprovar se a arma realmente havia sido disparada no dia em que o jovem morreu.

    Outro ponto questionado diz respeito à altura do soldado mencionada no laudo oficial. A reportagem apurou que a estatura indicada foi de 1,74, mas Christian era bem mais baixo, contando com 1,62 metro, conforme consta na metragem do caixão lacrado, onde o corpo dele foi velado.

    Depoimentos contraditórios

    As versões dos colegas de farda da vítima também se mostraram contraditórias, como apurado pela reportagem.

    No inquérito, um soldado teria afirmado que, ao chegar à guarita para render o companheiro de serviço, encontrou Christian já caído, por volta das 15h35.

    Outro militar, que deveria estar de serviço no posto onde Christian foi encontrado morto, disse não ter ouvido disparo algum, ficando ciente do que havia acontecido somente por volta das 15h40.

    Outros relatos variaram nos horários. Em um deles, um militar disse ter ouvido o acionamento do alarme às 15h02, enquanto outro mencionou o chamado às 14h40.

    Vídeo:

    Há também divergências sobre o contato prévio com Christian. Um dos colegas de farda relatou que a troca de posto foi rápida, “pela janela”, enquanto outro garantiu ter conversado normalmente com o soldado Christian, sem notar comportamento estranho.

    Em outro depoimento, há o relato de que o soldado teria usado álcool e drogas. Contudo, o exame toxicológico, obtido pelo Metrópoles, desmente a informação.

    Também foi mencionado que o jovem não se dava bem com a família e que estaria triste por causa da morte da avó. De acordo com a mãe, registros em vídeo, assim como mensagens de texto enviadas por Christian a familiares e à namorada, sugerem outra realidade.

    A reportagem apurou, ainda, que há a suspeita de que uma das testemunhas ouvidas pelo Exército estava de folga no dia em que o corpo do jovem foi encontrado na guarita. Isso deixou a família do soldado ainda mais desconfiada.

    “Sem supervisão”

    A advogada Marinalva de Aguiar afirmou que, ao ler os documentos do Exército sobre o caso, teve a impressão de que Christian e seus colegas de farda trabalhavam “sem supervisão”.

    “Não tinha supervisão. Em tudo o que eu li, analisei, senti muita brincadeira, nem parece um ambiente militar. Não foi suicídio? Pode ter sido um acidente? Alguém ter entrado na guarita e assustado ele, que poderia estar [eventualmente] dormindo? Ou a pessoa brincando com arma tenha [atirado]? Pode ser”, disse.

    Após ter acesso ao celular do filho, cerca de sete meses após a morte dele, Juliana vasculhou todas as conversas de Christian. Ela encontrou trocas de mensagens entre ele e colegas de farda, além de superiores. Havia menções a punições sofridas pelo jovem, sobre as quais ele não comentava com a família.

    Parte dos castigos resultava de fotos que Christian compartilhava nas redes trajando o uniforme do Exército, ou ainda a supostas montagens, como uma na qual um filtro foi usado, fazendo parecer que ele havia passado batom. O registro com a maquiagem fake foi enviado ao superior de Christian por alguém não identificado.

    “Nas conversas, fica claro que o major nem quis entender o lado do meu filho. Ele deixou claro que um castigo seria aplicado”, diz Juliana.

    A mãe questionou outros jovens soldados sobre as punições e descobriu que haveria, inclusive, castigos físicos — como um em que militares são colocados com roupa sob chuveiros com água gelada e, depois, deixados ao relento.

    O que diz o Ministério Público Militar

    Após a morte de Christian, Juliana entrou em contato com o promotor militar Adilson José Gutierrez. Eles se encontraram em fevereiro, ocasião em que a mãe pediu a reabertura do processo — que a esta altura já estava encerrado e arquivado. Para isso, ele explicou que ela precisaria levantar provas e submetê-las a uma avaliação.

    Na época, Adilson Gutierrez teria se espantado com o fato de o celular do jovem ainda estar em poder do Exército e determinou que o aparelho fosse entregue a Juliana. Com acesso às conversas do filho, ela se empenhou ainda mais na luta por uma nova investigação oficial sobre o caso.

    Após contratar a advogada Marinalva de Aguiar, Juliana finalmente teve acesso ao inquérito do Exército. A partir daí, os peritos particulares se debruçaram sobre o documento e identificaram possíveis inconsistências na apuração do Exército. Toda a análise foi encaminhada ao promotor militar.

    Em nota ao Metrópoles na quinta-feira (25/9), o promotor Adilson José Gutierrez informou que solicitou diligências ao Instituto Médico Legal para esclarecer as informações dos familiares de Christian.  “O Ministério Público Militar ainda aguarda respostas aos questionamentos apresentados para manifestação”, diz trecho do posicionamento.

    Ele requisitou que peritos oficiais esclareçam os pontos técnicos controversos — como a diferença na estatura da vítima entre laudos e a suposta sobreposição de sinais de tiro encostado e de curta distância.

    Adilson Gutierrez também pediu ao Exército documentos formais sobre a escala de serviço e a cautela do armamento. Para o promotor, só com essas respostas será possível afastar as contradições que hoje cercam a morte de Christian para a eventual reabertura do caso.

    O que diz o Exército

    O Comando Militar do Sudeste afirmou ao Metrópoles em nota que a conclusão do laudo oficial que indica o suposto suicídio de Christian foi fundamentado em análises periciais e “demais provas produzidas”. O arquivamento do caso foi feito por determinação da Justiça Militar da União e da Promotoria Militar, diz a nota.

    “Cabe esclarecer que o local onde o fato ocorreu foi devidamente preservado, conforme as normas vigentes, cabendo ao órgão pericial do Exército a realização da perícia, em razão de o fato ter ocorrido em área sob jurisdição militar.”

    O Comando do Sudeste afirmou, ainda, que o Instituto Médico Legal removeu o corpo do soldado “diretamente do cenário do ocorrido” com a conclusão “dos trabalhos periciais” .

    O Exército acrescentou que se solidariza com a família enlutada e afirmou pautar suas ações “pelo respeito irrestrito à legalidade”.

    Nenhum apontamento foi feito sobre as contradições apontadas no laudo particular, feito à pedido da família de Christian.