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    O 11.º mandamento de Donald Trump (Por João Miguel Tavares)

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    A cerimônia de homenagem a Charlie Kirk expôs de forma cristalina a grande dúvida existencial da atual direita americana, que não é muito diferente das dúvidas que assolam as direitas europeias: quem é que merece mais ser apoiado? Um político com maus princípios que defende as causas que a direita considera serem as certas, ou um político de bons princípios, mesmo que defenda causas erradas? A maior parte dos americanos, como sabemos, votou no político dos maus princípios. Mas quando esses maus princípios se cruzam com a celebração do martírio de uma jovem estrela da direita religiosa – é assim que a morte de Charlie Kirk está a ser classificada pelos seus admiradores –, o resultado só pode ser um extraordinário curto-circuito.

    O evento do passado domingo foi dominado por dois discursos: o de Donald Trump, a fechar, e o de Erika Kirk, que o precedeu. Erika Kirk é tudo o que podemos esperar de uma antiga Miss Arizona: muito bonita, muito loura, muito articulada, ligeiramente teatral, muito à vontade em cima do palco, muito mãe de família e muito religiosa. O momento mais forte e partilhado da sua excelente intervenção foi quando afirmou, comovida, que perdoava o assassino do seu marido: “Aquele homem, aquele jovem, eu perdoo-o. Perdoo-o porque foi o que Cristo fez, e era o que Charlie teria feito. A resposta ao ódio não é ódio. A resposta que conhecemos do Evangelho é amor, e sempre amor.” Isto foi dito no meio de uma gigantesca salva de palmas, e com metade da sala tão comovida quanto ela.

    Mas a seguir veio Donald Trump, que nunca desilude na exibição da sua bílis. Só que desta vez ele não se limitou a ser desagradável: dinamitou ao vivo e em direto um dos pilares fundamentais da mensagem cristã. “[Charlie Kirk] não odiava os seus opositores, ele queria o melhor para eles”, disse Trump, ainda a ler o texto inscrito no teleprompter. Logo depois, largou o discurso planejado e acrescentou de improviso: “É aqui que discordava de Charlie. Eu odeio os meus opositores. Eu não quero o melhor para eles, lamento. Lamento, Erika. Agora, a Erika pode conversar comigo, com todo o seu grupo, e convencer-me de que isto não está certo. Mas eu não suporto os meus opositores.”

    A Regra de Ouro cristã incita-nos a tratar os outros como nós próprios gostaríamos de ser tratados. Contudo, em certos momentos dos Evangelhos, Jesus vai mais longe, convidando-nos ao amor desmedido: amar os inimigos; dar a outra face; oferecer tudo o que se tem. Não é expectável que isto seja literalmente acolhido nas nossas vidas, mas também não se espera que um Presidente dos Estados Unidos da América, em boa medida eleito pelos votos da direita evangélica, desmereça de forma tão explícita as palavras dos Evangelhos.

    Daí que o vice-presidente J.D. Vance se tenha apressado a desculpá-lo: “Acho que o Presidente estava a brincar”, desvalorizou. “Se forem para trás e analisarem todo o discurso, aquilo que o Presidente estava a tentar fazer, de uma maneira humorística e muito pessoal, era alertar para o quão difícil é perdoarmos os nossos inimigos.” Infelizmente, o Presidente não estava a fazer nada disso. Em linguagem eclesial, Trump é um verdadeiro pagão, com uma concepção romana e imperial de poder, dado o seu fascínio pela glória. O seu 11.º mandamento é um regresso ao passado: o tempo do olho por olho e dente por dente, no qual a lei do mais forte impera. Tudo isto pode ser humano, demasiado humano. Absolutamente nada disto é cristão.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)